segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Planaltina e a crise política no DF

Na terça feira (09/02) a OAB nacional, na pessoa de seu presidente Ophir Cavalcante, fez um pedido formal à procuradoria geral da república pedindo a prisão preventiva ou o afastamento do governador José Roberto Arruda. Cavalcante declarou sobre Arruda que "Sua permanência no cargo poderá ensejar dano efetivo à instrução processual", ou seja, segundo o presidente da OAB, a permanência de Arruda como governador pode ser danosa às investigações dos esquemas de corrupção, conduzidas atualmente pela Polícia Federal em sua operação Caixa de Pandora.

Sob certa perspectiva, pode-se afirmar que Arruda já caiu. Expulso de seu partido, Arruda ficará pelo menos os próximos dois anos sem a possibilidade de ocupar qualquer cargo eletivo no Brasil. Mas não é isso que fundamenta a avaliação de sua queda. Ora, com pouco tempo restante de governo, e estando o GDF na ordem do dia da mídia e de órgãos de controle social como o Ministério Público Federal, Arruda está impossibilitado de perpetuar o real motivo de seu envolvimento com a política institucional, que é a acumulação de recursos para si e principalmente para os grupos empresariais que o apoiaram. Impossibilitado politicamente de começar novas obras ou de captar recursos externos (via BID, por exemplo), Arruda sofre também uma ação judicial impetrada na sexta feira (05) pela OAB nacional pedindo o bloqueio de seus bens e dos deputados distritais citados na Operação Caixa de Pandora, da PF.

Historicamente, os setores empresariais buscam controlar o Estado, o qual passa então a atuar no sentido de viabilizar as operações em grande escala que são necessárias para manter o ritmo acelerado da acumulação de recursos. Sob esse aspecto, Arruda está impossibilitado de cumprir sua função. Os setores do empresariado que financiaram sua eleição e o apoiaram estão neste momento procurando um novo arranjo sob o qual possam manter o controle sobre o governo distrital, a fim de continuar contando com seu indispensável apoio para a realização de uns tantos Noroestes (atualmente, o símbolo mais vistoso dessas relações) no Distrito Federal.

Onde fica Planaltina nesse momento? Qual a parte que lhe cabe nos intercâmbios de poder e de recursos mobilizados pela ação da política institucional? Repetindo aquilo que foi dito no primeiro parágrafo deste texto, a gestão de Arruda baseou-se na realização de grandes obras públicas. É através delas que Arruda garante o apoio dos setores da burguesia responsáveis por sua manutenção no poder. Basta lembrar que o vice-governador do DF, Paulo Octávio, é dono da maior imobiliária do Distrito Federal e mantém também grandes operações de incorporação e construção.

Por esse motivo, é possível demonstrar que, durante o governo Arruda, A região de Planaltina e as cidades próximas receberam um volume substancialmente maior de investimentos em obras de infra-estrutura, se comparado com o governo anterior, sob o 4º mandato de Joaquim Roriz (2003-2006). Um texto publicado em 28/03/2006 (portanto, ao fim do último governo de Roriz, encerrado em março daquele ano) no site da administração regional de Planaltina traz a seguinte passagem, sobre a instalação de uma rede esgoto no bairro Arapoanga: “Serão implantados 81 quilômetros de redes, ramais condominiais, interceptor e linha de recalque, com 6,6 mil ligações prediais, beneficiando cerca de 30 mil pessoas. Os investimentos serão de R$ 7,8 milhões.” Num texto sobre as obras em Planaltina realizados pela gestão Arruda, colhido da página do GDF e publicado em 14/09/2007, pode-se ler o seguinte: “A região de Planaltina, Mestre D´Armas, Vale do Amanhecer e Arapoanga receberá investimento de R$ 48,6 milhões para melhorias em infra-estrutura. Planaltina e o condomínio Mestre D’Armas terão mais de R$ 11 milhões em obras e serviços de infra-estrutura, esporte, lazer, saúde e educação.” A comparação é ilustrativa apenas da diferença de escala entre as operações realizadas pelas gestões de Roriz e Arruda.

Essa diferença de escala no volume investido em obras significa, em termos de capital político, uma mudança da percepção, pelo menos por parte da população, sobre a atenção dispensada a elas pelo poder institucional. Embora persistam em Planaltina, como em todo o DF, os grupos ligados à Roriz, estes se encontram bastante enfraquecidos diante da opinião pública em face do aumento do volume de recursos destinados à cidade. Roriz formou sua base de sustentação apoiando e fomentando ocupações ilegais de áreas públicas, que deram origem a verdadeiros “currais eleitorais” quadrilátero afora. Os beneficiários desse processo formam o grupo de apoio mais consistente do qual Roriz dispõe hoje. Quanto aos grupos de esquerda, sua capilarização em lugares como Planaltina é mínima. Basta constatar que, via de regra, no DF, os detentores de cargos eletivos ligados aos partidos percebidos como de esquerda têm sua base eleitoral principalmente entre a classe média, segmento presente, mas minoritário em Planaltina.

Portanto, é altamente compreensível que uma parte da população de Planaltina avalie sua relação com o poder institucional sob o paradigma do “rouba, mas faz”. A despeito de toda a corrupção e de todas as conseqüências nefastas da gestão Arruda, é difícil argumentar sobre corrupção, neoliberalismo, degradação ambiental e destruição do planejamento urbano, com populações que percebem uma melhora sensível em suas condições de vida, dado o aumento da quantidade de recursos disponíveis para obras de infra-estrutura, pelo menos neste primeiro momento.

Em verdade, seria necessário escrever todo um volume para listar os malefícios trazidos ao Distrito Federal e à Planaltina sob a égide do governo Arruda e de seu modelo privatizante e explorador. Em longo prazo, a manutenção deste modelo de gestão tem potencial quase ilimitado para degradar as condições de vida da maioria da população e para submetê-las ainda mais ao julgo da concentração de renda e da exploração pelo capital, que é a finalidade última dos governos neoliberais, e é também a forma através da qual eles mantêm as zonas periféricas das cidades e seus moradores submissos.

O pensamento de uma parcela significativa da população de Planaltina entretanto parece passar longe dessas questões. Um expoente dessa linha de pensamento pode ser encontrado no jornal Recado News, que abrange a região da chamada saída norte (Sobradinho, Planaltina, Planaltina de Goiás, entre outras localidades). O editorial da edição de janeiro de 2010 (nº 170) tem por título “O entorno sofre com Brasília” e traz, em síntese, um ponto de vista segundo o qual o escândalo de corrupção estaria a impedir as melhorias conduzidas por Arruda na saída norte de continuarem, escândalo esse fomentado pela mídia e pelos grupos políticos de oposição ao governo, tendo em vista fins eleitorais, de forma injusta e indevida. Eis o trecho final do supracitado editorial: “Será que, depois do revés, as mudanças apontadas e já iniciadas continuarão ou o Entorno será, mais uma vez, vítima inocente de um fatídico esquema do qual (sic) nada tem a ver. Entorno sofre com Brasília.”

Sobre esse veículo de comunicação é preciso pontuar algumas coisas. Em primeiro lugar, trata-se de um jornal cujo apoio ao governador Arruda é explícito. Nesta mesma edição, foi publicada uma página inteira (página 8) contendo uma carta redigida pelo governador sobre o escândalo de corrupção. Congruentemente, trata-se de um veículo francamente conservador. No mesmo número há uma matéria exaltando o movimento de expulsão de uma zona de prostituição de Planaltina por igrejas protestantes (“Marechal agora é ‘rua das igrejas’”, página 10), no qual os templos são descritos como “a parte boa da sociedade”. Seria portanto inverídico supor que maioria da população de Planaltina concorde totalmente com opiniões tão retrógradas e marcadas a favor de Arruda. Duas das fontes ouvidas confirmam episódios de vaias públicas, por parte da população de Planaltina, a deputados distritais oriundos da cidade e envolvidos com o esquema de corrupção investigado pela Polícia Federal.

Por outro lado, conversas casuais com populares na cidade revelam que o ponto central do editorial do Recado News parece ser quase consensual, principalmente entre os moradores das áreas menos atendidas por equipamentos urbanos. A população se ressente de uma possível interrupção das obras de infra-estrutura. Douglas Alves, 18 anos, vendedor ambulante em uma barraca próxima à rodoviária de Planaltina, não se declarou favorável ao governador Arruda, mas expôs o seguinte em uma conversa informal: “É fácil pra vocês playboyzinho, que mora no plano, querer tirar o cara, mas ele colocou escola, melhorou o esgoto lá onde eu moro [no bairro Arapoanga]. Sem isso, como é que eu fico?”

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

o circo p.I

A hora de descer do palco é sempre a mais difícil. O trapezista ouvia as palmas do fim do espetáculo como um som misto, feito de júbilo mas também de agonia. O som prenunciava o cair da escuridão pesada sobre o palco, uma escuridão que com o seu peso, sua massa, expulsava todos eles para fora dali, para a colchia e por fim para o camarim, irresistível como um vento forte. Não que o trapezista amasse o palco, nem que tivesse medo do camarim. Mas o palco era o reino dele, era o lugar onde ele estava de certa forma sozinho com sua arte, seus anos de treino, seus músculos fortes. Naquele estrado tudo estava resolvido, e lá ele estava certo de que ninguém poderia interrompê-lo ou intervir no que ele fazia. Era o lugar onde só o trapezista existia. O palco comportava somente um corpo ágil com roupas coloridas. Ali não havia espaço para Antônio pai de duas filhas e separado da mulher, nem para João viciado em valium, nem para Carlos nem pra Marcos, nem para nenhum deles, apenas para o trapezista, o palhaço, o homem bala.

E era por isso que era tão ruim descer o palco. Pois o trapezista sabia que já na colchia ele voltaria a ser Marcos, voltaria a ser Antônio, voltaria a ser João. E Antônio não era forte e artista como o trapezista. Antônio deixava as moedas caírem na hora de passar pela catraca do ônibus. Antônio não deslizava num vôo rítmico cheio de piruetas e fogos de artifício que encantavam as pessoas. Quando ouvia as palmas, o trapezista já sabia que um tipo diferente de demônio aguardava Antônio atrás das cortinas.

As mãos dadas que agradeciam o público se desfaziam no momento exato em que a luz se apagava. Cada um carregava o seu próprio cansaço para um lado, ficando totalmente sozinhos. Naquela noite Antônio não voltou para o caminhão dentro do qual ficava seu camarim de trapezista. Trocou de roupa ali mesmo na cochia. Tirou a roupa de trapezista, que foi dobrada e gentilmente guardada dentro de uma sacola. Colocou as roupas de Antônio, apalpando sofregamente o bolso esquerdo da calça, onde a mão logrou encontrar intacta a única coisa que realmente importava para Antônio naquele momento, e que era uma pedrinha de haxixe. Era uma pedrinha escura e quadrada, pouco maior que o polegar de da mão direita de Antônio. Tinha um rosto de Odalisca impresso, fora trazida de um país muito distante e à muito custo. De fato, aquele tijolinho representava as economias de muito tempo.

Antônio saiu debaixo da lona do circo direto para a rua, onde encontrou dois jovens que acompanhavam o circo. Os dois estavam entre a platéia que se dispersava depois do espetáculo. Eles rodavam malabares e seus olhos irradiavam uma alegria plena e infantil. Estavam envolvidos num tipo de jogo quando Antônio chegou. Um deles fazia uma graça com os malabares, que o outro depois tentava repetir. Ao mesmo tempo que divertia, o jogo cumpria uma função didática, já que forçava o jogador menos apto ao treino, tendo o outro por modelo. É claro que nenhum dos dois pensava nisso diretamente. O estado dos dois suscitava dúvidas nos pais de família presentes sobre se eles conseguiam pensar diretamente em alguma coisa naquela hora. Assim que Antônio apareceu os dois pararam o jogo e se voltaram para ele. Como Antônio era o único membro "de verdade" do circo que eles conheciam, havia um vínculo quase de vassalagem entre eles.

Embora já estivessem acompanhando o circo à uns três meses, ainda se consideravam como viajantes independentes, e faziam questão de deixar essa condição clara em sua lida com os outros. Andavam sempre de mochila, por exemplo. E nunca acampavam no mesmo lugar onde o circo propriamente dito estava. Mas três meses já era bastante tempo, e a convivência já corroera um pouco o rigor da relação entre estranhos que eles mantiveram de início com Antônio, de forma que agora os três mantinham conversas que antes teriam parecido comprometedoras, embaraçosas e confusas, e que entretanto divertiam os três por longas horas de tédio, após o almoço, sob a lona.

Os três deixaram o burburinho e as luzes amarelas do circo para trás, caminhando noite adentro em direção ao clarão no céu onde eles supunham ser o centro da cidade. Era um grupo estranho. O bom senso burguês diria se tratar de um trabalhador rural acompanhado por dois vendedores de artesanato da torre de TV. E foi lá mesmo que os três acabaram chegando, caminhando desde algum lugar ao longo do eixo monumental até o vazio noturno da esplanada.

A caminhada durou pouco mais de uma hora. E num dos muitos momentos onde o grupo não se achava próximo de nenhuma construção nem nenhum ser humano que não estivesse num carro, o rapaz começou a discussão sobre liberdade. Era uma das longas conversas para matar o tempo. Ele falou uma frase bonita que havia lido em algum lugar, acho que para agradar Antônio, e a frase dizia mais ou menos que liberdade é estar aberto à tudo, mas não se apegar à porra alguma. Antônio gostou da frase, mas percebeu que não era do rapaz. Antônio gostava das conversas nem tanto por aquilo que era dito, senão pelas possibilidades que surgiam de fazer pequenos jogos verbais com o rapaz e a moça. E essa frase abria a ocasião para aquela brincadeira na qual Antônio ia inquirindo pequenas incoerências nas falas do rapaz. Antônio vencia se conseguia fazer com que o rapaz desse risadas nervosas e largasse mão daquele assunto, partindo pra outro. E o rapaz vencia se Antônio desse à entender que admirava sua cultura e seus pensamentos. Havia um tipo de acordo tácito entre eles de que aquele tipo de conversa não seria levado à sério totalmente. Nenhum dos três voltava à um assunto que já tivesse sido objeto daquele jogo, por exemplo. Por isso mesmo, a fronteira entre a idéia criada na hora e uma idéia séria era sempre turva. Às vezes fazia-se um esforço enfático para alinhar o tema à um dos dois lados, sobretudo quando se tratava de algo muito estapafúrdio ou de algo realmente considerado sério. Mas essas ocasiões costumavam ser aborrecidas para Antônio. Este se divertia realmente com o jogo quando haviam nuances e meias verdades no discurso, que precisavam ser interpretadas.

A luz da manhã seguinte apanhou os três deitados nuns banquinhos de quadra. O rapaz e a moça dividiam um enquanto Antônio deitava no outro, logo ao lado. A noite anterior fora movimentada. A grande quantidade de haxixe fumada acabara por deformar um pouco as lembranças, de fato que Antônio guardava apenas um emaranhado de imagens, sons e sensações da noite que passou. Lembrava também de alguns rostos diferentes. Era sempre assim com o haxixe: primeiro vinha uma lembrança desorganizada e afetiva, como uma onda, que depois era organizada até constituir uma narrativa que explicasse as coisas de forma satisfatória, e que mesmo assim ele sabia que nunca era definitivamente correta.

Os três sentaram num bar, logo que chegaram à cidade. Apesar de ser uma birosca voltada para a parte de trás de uma quadra comercial, haviam bastante mesas de plástico e todas elas estavam cheias de gente. A moça brincou com os malabares e chamou atenção de vários grupos de pessoas que estavam ali bebendo. Do bar, Antônio notou apenas que os blocos de apartamentos ali perto tinham um ar hostil e que a cerveja era cara.

Lá pela uma da manhã o lugar fechou, dispersando os gatos pingados madrugada adentro. A moça e o rapaz conheceram um grupo que bebia no bar, e que depois acabou seguindo os três. Antônio saiu pela noite fria e mal iluminada com os outros, e à medida que caminhava seu desgosto daquela cidade ia aumentando. O ar frio machucava as narinas e a garganta. Por fim, acharam um pouso que agradou à todos. Era uma quadra de esportes totalmente destruída; ficava dentro de um descampado no meio das quadras. As pessoas do lugar haviam pego os troncos caídos de árvore e construído banquinhos. Antônio achou agradável estar num lugar tão singularmente humano e que por isso mesmo se destacava da paisagem em volta.

Eles se sentaram lá e fumaram haxixe. O rapaz trazia um pequeno canivete com o qual tirou lasquinhas da droga. Alguém doou um cigarro de palha, que o rapaz desmanchou. O tabaco do cigarro foi misturado com haxixe e posto dentro de um grande cachimbo. Este era de madeira e tinha esculturas de durepóxi pintadas com tinta óleo e sementes coloridas. Era um pouco assustador, e talvez fizesse uma criança pequena chorar de medo, com sua pequena cara de demônio em cima do cabo.

Todos ficaram muito loucos. O grupo que havia vindo do bar foi embora. Eram um menino e duas meninas, todos tinham uns 20 e poucos anos e eram simples vagabundos de Brasília. Não se conformavam em ficar em casa à noite e saíam por aí conhecendo todo tipo de gente que se pudesse achar pela madrugada. Tinham um ar entediado e seus corpos eram meio pálidos, porque nunca andavam durante o dia. Falavam num linguajar peculiar, que misturava os inícios de uma erudição livresca com falares extravagantes recolhidos ou criados especialmente para esse fim. Se diziam adeptos de práticas sexuais pouco comuns e pareciam fornicar muito entre si. A moça notou que o menino, que se chamava Danilo, tinha um ar meio afeminado. Os três contavam estórias de outras madrugadas enquanto Antônio e o rapaz, doidões de haxixe, pegavam madeira pelo descampado para fazer uma fogueira.

- Teve aquela vez que a gente caiu na casa daquela guria louca. Velho, a mina chamou todo mundo pra casa da tia dela, que tava vazia. Tinha umas 15 pessoas lá e era todo mundo desconhecido, estranho mesmo. E ela tava muito louca. Tava tocando dorival caymmi mas ela dançava como se fosse psy trance, sei lá. Ela levou o danilinho pro quarto e chupou ele até o coitado ficar com o piruzinho ardendo (risos). Ela deu sorte de só ter gente boa, por que se tivesse alguém com maldade do coração podia ter roubado todas as coisas dela!

O tom da conversa aumentava sempre mais, acompanhando o fogo que ficava sempre mais forte. De repente o menino fez silêncio e fez sinal para que os outros silenciassem também. E no silêncio que se fez eles escutavam apenas as toras de madeira pegando fogo e o barulho de cascos de cavalo contra o chão de concreto da calçada. Era uma dupla de policiais montados à cavalo que passava desfilando uniformes pretos e agressivos, acentuando o caráter feudal da cidade.
- Esses porras tão passando direto por aqui. Tem uma galera que já rodou com esses canas de cavalo. E o foda é que nem dá pra tentar fugir, por que à cavalo dá pra entrar dentro da jamaica. Na viatura dá até pra vazar quando os canas tão chegando, mas de cavalo é foda.

O grupo de brasilienses foi embora lá pelas 3 ou 4 da manhã. Convidaram a moça e o rapaz para ir com eles, provavelmente para a casa ou apartamento de um deles. Como eles recusaram, só restou aos infantes irem embora se chupar em outro canto. O rapaz e a moça foram para uma parte mais escura da jamaica, deixando Antônio sozinho diante do fogo. Àquela altura, Antônio não se lembrava nem em que parte do mundo estava. Divertia sua mente pensando em como seria ver o mundo através das pupilas opacas de um cachorro morto. Nessas horas, Antônio apenas sentia. Sentia o frio nas costas e o leve calor do fogo na parte da frente do corpo. Sentia o chão da quadra onde estava deitado. Uma semente de alguma daquelas árvores embaixo das suas costas, ou quem sabe uma pedrinha. E absolutamente, quando ficava assim, sentia que pertencia organicamente àquele lugar, fosse onde fosse. Sentia que se ele saísse dali faria um buraco no mundo que sangraria até se acomodar novamente sem ele. Sempre que ele ficava assim lhe vinha à mente aquela imagem que ele viu um dia. de um cachorro morto. Era no meio de Minas, no acostamento de uma estrada, num lugar que parecia o alto de um morro. Um cachorro preto estendido do lado da estrada, morto sob o sol de meio dia. Não fora atropelado, mas estava lá morto. Devia estar lá à uns três dias. Antônio viu aquilo quando criança e a cena nunca lhe saiu da cabeça. Particularmente os olhos do cão estavam fortemente impressos na memória; junto com várias outras lembranças mais ou menos sem sentido da infância. E Antônio ficou pensando nisso até adormecer ao lado do fogo.

domingo, 28 de junho de 2009

Tout ébranler pour conaître l'innebranlable

"Era um espetáculo. Tinha algo de vento forte na mata, arrancando e fazendo redemoinhar ramos e folhas; caía depois sobre a cidade para bater sobre as vidraças, abri-las ou despedaçá-las, espalhando-se pelas casas, derrubando tudo; quando parecia chegando ao fim do mundo, ia abrandando, convertia-se em brisa vesperal, cheia de doçura. Só então se percebia que era música, sempre fora música".

segunda-feira, 22 de junho de 2009

prostitutas ( I )

Eu vinha atravessando a quadra. O inverno em Brasília oferece certos desagrados que são únicos no mundo. Nas sombras dos blocos, nos estacionamentos feios e sem árvores das quatrocentos, o frio era incômodo, e era possível ouvir as pessoas que acordavam. No sol, era possível sentir a pele ardendo depois de algum tempo. E em ambos os lugares era inevitável sentir o vento seco e frio que fazia minha garganta sangrar. O açoite do vento trazia consigo um gosto incômodo de noite.

Foi numa manhã fria de junho. O céu estava totalmente azul, o sol brilhava pálido esquentando o asfalto, e entretanto fazia frio. As mães desciam dos blocos trazendo as crianças para tomar sol no parquinho. Mas naquele parquinho não havia nenhuma criança. Nenhuma mãe ou avó responsável levaria uma criança para brincar perto daqueles três personagens.

Os três estavam em um banquinho na quatrocentos e onze que durante a semana era usado por um grupo de mecânicos de rua. Hoje os mecânicos não estavam lá, deviam estar em casa com a família, engordando. Tudo que a cidade tinha para substituir os mecânicos eram esses três, duas mulheres e um rapaz.

O rapaz estava deitado no chão sob o sol, de barriga para cima, com as pernas abertas e os joelhos dobrados. Na barriga, em cima da camisa do São Paulo, ele tinha um celular que tocava uma música num volume alto. A música era um pop indistinto, cantada por uma voz feminina, em inglês. Era aquele tipo de voz que se manteve constante na música pop anglo-saxã dos últimos 30 anos, com pequenas variações mas se mantendo sempre a mesma. A música como um todo, aliás, seguia o mesmo padrão. Em última instância, o personagem como um todo seguia aquele mesmo padrão. Indistinto, algo pasteurizado. Um rosto desconhecido e no entanto igual à milhares de outros que eu já vi. Aquilo me incomodava.

As moças estavam sentadas no banquinho da quadra. Eram bem diferentes entre si, embora tivessem uma familiaridade entre si e com o rapaz também. Uma delas era bem gorda. Vestia uma minissaia púrpura, de um tecido enrugado e estranho, e um top verde. Tinha cabelos longos, pretos e encaracolados, a pele tinha o tom pardacento comum às pessoas de brasília como um todo. É um tom de pele que talvez só exista aqui. Se existisse em qualquer outro lugar do país, aquela pele seria bronzeada e mais escura. Mas em Brasília o sol é uma raridade. O povo de forma geral não tem acesso à lugares para tomar sol. Piscinas são absurdamente caras, embora mesmo assim o bairro com mais piscinas por habitantes no Brasil esteja em Brasília e fique não muito longe de onde a mulher estava sentada naquele momento. Apesar de estar sentada no banquinho, a gorda não evitava o sol, ao contrário, se inclinava de forma a colocar o corpo no sol. Seus seios eram enormes e se postavam tranqüilos sobre as dobras gordas da barriga, que por sua vez estava apoiada nas pernas. A estrutura formada por aquelas partes moles era recoberta pelas finas camadas de tecido estranho e puído, criando uma sensação de deformidade.

O rosto da moça contradizia de alguma forma essa sensação. E embora aquele rosto oval e emoldurado por um cabelo maltratado não fosse de forma alguma atraente, ele não deixava de emanar uma estranha serenidade. Naquele rosto se viam anos de apoesares variados. Apoesando-se daqueles sofrimentos todos, o rosto conseguia de alguma forma transmitir uma calma e uma serenidade que eu sentia faltar em mim mesmo naquela manhã fria de junho. Era um rosto gordo e tranqüilo de Buda.

Uma boa forma de verificar o quanto uma pessoa vive bem é ver a capacidade que ela tem de existir apoesar os próprios problemas. Apoesar não é adoçar, não é fazer poesia sobre o sofrimento. Apoesar é lidar com a dor de forma sincera, sem fingir que ela não existe, sem tentar fugir dela. Apoesar não deveria nem ser escrito como verbo, mas apenas como conjunção adversativa. Como tudo o que é humano padece, só nos resta viver apoesar do padecimento. Viver é padecer e ainda sim viver apoesar de tudo. Essa palavra eu aprendi naquele dia.

A outra moça buscava com o corpo a sombra da pequena castanheira que havia ao lado do banquinho. Com uma mão, segurava um celular com o qual conversava. Ao contrário da outra, era uma moça magra. Sua voz agoniada no celular quebrava a paz daquela manhã estranha. A moça conversava com alguém importante para ela. Falava como as pessoas falam de coisas importantes que acabarão por ter uma grande importância em suas vidas. A conversação nessas ocasiões se dá sempre como um enfrentamento entre frentes opostas, com retrocessos, concessões, rompantes de raiva e de angústias e por fim novos acordos. A moça vestia uma calça jeans com uma sandália, numa combinação igualmente fora dos parâmetros do que as pessoas consideram elegante. Tanto a calça jeans quanto a sandália eram velhas e estavam parcialmente sujas de poeira.

A moça magra desligou o celular e parecia chorar. À essa altura eu tinha acabado de passar pelo grupo. Minha primeira impressão quando os avistei era de que se tratava de prostitutas. Provavelmente eu estava certo. Os três já viam minhas costas quando uma delas me chamou. Foi a gorda, já que a outra tinha entrado num choro convulso, e o rapaz parecia dormir. Eu parei de andar quando ouvi. A verdade é que o grupo tinha me cativado de alguma forma, e eu precisava saber mais sobre aquelas pessoas. Meu corpo me alertava sobre os aborrecimentos pelos quais eu fatalmente passaria se resolvesse virar e ir até eles. Minhas pernas tinham vontade de apenas seguir em frente, ignorando os chamados débeis do que deveriam ser duas prostitutas feias e infelizes, e um cafetão ou ladrão de galinha.

Virei o corpo e caminhei na direção dos três.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

hai-kai do B

Emília

Linda, boneca, puta.
Fuma pedra
E numa piça labuta.

terça-feira, 2 de junho de 2009

blog novo, vida nova

Fruto de uma relação extra-conjugal com o lado literário da força, este blog aqui finalmente encontra seu termo. Decerto que não será deletado nem nada disso; continuará aqui. Mas minhas energias agora se voltam para o ofício de informar, de suprir meus leitores com informação bobagenta. A casa nova fica nesse endereço:

http://blogdobatman.wordpress.com/

Quanto à essas páginas, contnuarão aqui, vez por outra recebendo algum novo trabalho. Obrigado à todos e divirtam-se.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O que vai pelo mundo? - Festa da Adidas numa mansão nazista

Sexta feira, enquanto eu saía naquele fatídico rolê brasiliense, rolava no Rio de Janeiro uma festa promocional da Adidas. O detalhe é que o "evento" aconteceu numa mansão na gávea decorada com motivos do Terceiro Reich. Quandros de oficiais nazistas, suásticas nos azulejos da piscina e cartazes de propaganda da marinha de guerra do Füher.

O achado foi feito por um blogueiro de nome engraçado.

http://oglobo.globo.com/blogs/cuenca/posts/2009/05/23/festa-da-adidas-em-mansao-nazista-189027.asp

Conhecidentemente, a Adidas é uma empresa alemã, fundada por um camarada de nome Adolf.

Longe de sugerir qualquer ligação entre as três listras e a suástica, a conclusão que fica é a de que burguesia de ontem é a burguesia de hoje, seja financiando regimes genocidas, seja promovendo festas de gosto duvidoso.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

patiférias

Eramos três. Eu, o bróder e a guria. O bróder ia na frente, com o volante na mão, pilotando nossa espaçonave reluzente por entre as luzes da via-láctea - ou seria o Eixão? - naquela madrugada mágica.
O bróder nesse momento era o monarca absoluto. Tinha nossas vidas na mão, nas mãos trêmulas, tinha o controle do som - que nesse momento era pilotado talvez com mais maestria que o carro - e sobretudo tinha a primeira dama ao seu lado. O bróder tinha seu momento de glória esculpindo um caminho sob a luz bonita dos primeiros raios de luz de um domingo qualquer desses.
E eu, à despeito de minha posição de reles ministro, tratei de me imiscuir na alcova real. E a cada quadra que passava zunindo por nós, me embriagava um pouco mais da presença da guria, quem diria, da santa e virgem e mil vezes imaculada guria do meu próprio bróder. Do meu melhor bróder, aliás, de um dos meus melhores bróderes. Aquela aurora assistia ao nascer gêmeo da minha confusão.
Me embriagava justo quando achava impossível mais alguma embriaguez, me embriagava daquela voz, sobretudo da voz, da voz e dos cabelos cuidadosamente desarrumados sobre a maquiagem desfeita. E, no entanto, como poderia? O que seria feito do meu amor-próprio se essa insanidade criasse raízes? Sim, porque nesses casos o impulso de preservação não é no sentido do outro, é no nosso próprio.
Num átimo, éramos quatro. Sim, no banco de atrás, na altura da pélvis eu tinha companhia. O Amigo despertara de súbito, acordado pelos pecaminosos pensamentos da parte de cima.

Amigo, eu lhe rogo, volte ao leito!
Depois de hoje, e pelo menos atá amanhã,
deverias estar satisfeito!

Minha pálida tentativa não foi sequer considerada, e por isso, a parte de cima teve que começar a imaginar conseqüências, calcular estratégias, enfim, fazer aquilo para o que foi feita. O quarto passageiro não dava sinais de retroceder, e dados os sinais que vinham do banco do carona eu mesmo não teria subsídio para criticá-lo.
Faltavam nove quadras, apenas nove quadras, para o momento fatídico. Pensei que nem mesmo todas as trinta e duas tesourinhas seriam suficientes - àquela velocidade - para que se amainassem os sinais dos meus pecaminosos sentimentos. E elas foram passando, uma a uma. Cada uma com um golpe de vista do amanhecer tranqüilo naquelas boas quadras. A Asa ia despertando com seus blocos, suas lojas, suas barraquinhas de dog, suas jamaicas serenas e verdes. Faltando apenas duas, desisti e me entreguei ao delírio brilhante de loucura daqueles olhos, dancei na melodia suave e descompassada da voz.
Ela desceu. O bróder a beijou graciosamente, gracioso que estava na luz dourada da manhã. Graciosamente ela desceu, e graciosamente ele me chamou à frente para o resto da jornada. Eu saí sabendo da singularidade nua daquele momento. Ela simplesmente me abraçou e no seu abraço eu senti o peso da minha inocência infantil e da inocência infantil de todos os homens. Foi um abraço duro. Ao meu olhar abobado e constrangido ela respondeu com um sorriso, que bailava entre os raios de sol e entre o desejo, o materno e o cínico.

epitáfio

nesses momentos do calvário eu sempre penso "porra, devia ter virado hippie".

sexta-feira, 8 de maio de 2009

... e mesmo depois disso tudo, a única coisa que podemos afirmar com certeza é que a ricota é o pior queijo já criado pelo homem.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Cortando um côco na traseira de um caminhão parado numa rua de fortaleza. Uma rua pavimentada com pedras ancestrais e irregulares, que no começo da noite dispersam o calor acumulado durante o dia.


É por isso

que a constituição é analítica,

analítica,

analítica.

Ela vai e vem,

Vai e vem,

Vai e vem.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

incursões (III)


3. A violência verbal e discursiva constitui o fruto mais pródigo da disseminação do estilo de vida urbano e da criação de um contingente urbano de miseráveis. O dito "rap nacional" parte para a propagação dos falhos valores morais neo-pentecostais de seus artistas através de uma retórica suja e francamente agressiva, calculada para ofender aqueles que, paradoxalmente, são os inimigos e os modelos imaginários da cambada.
Ora, já é tempo para a violência retórica ganhar o mundo! Chega dessas metáforas visuais de cunho sentimentalista e afeminado que infestam nossa poesia e a música! É hora de bater na mesa e formar um coro monumental para proclamar nossas verdades! Chega de ter vergonha de nossas próprias ambições, chega da maldita culpa! Por uma estética da simplicidade e da violência. Por uma estética da sinceridade acima de tudo.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

incursões (II)

2. A desgraça da raça humana, a verdadeira desgraça da juventude universitária de meus dias consiste em adotar justificações cada vez mais estéticas da vida. Quanto esforço, tempo e dinheiro não é gasto em regular milimetricamente um mundo de aparências socialmente elaboradas e cada vez mais meticulosas? Acho que, ao se definir no mundo, o sujeito atualmente o faz de forma puramente estética. Vou ser médico, porque acho bonitas as roupas brancas. Ao se projetar num futuro ideal, o doidão o faz praticamente como quem compõe uma cena. Lá estou eu: saindo de um apartamento bem decorado em tal bairro, pegando tal carro, com tal modelo de mulher ao meu lado. A cor da minha camisa é praticamente tão importante quanto o lugar onde eu trabalho. Digo, a justificativa estética tem sim seu valor. Por mais desagregadora que seja, a vida estética tem a propriedade de ser livre de vínculos profundos. Muda-se de vida como quem muda de roupa (literalmente) e isso chega a ser bom, se um se encontra totalmente privado de um sentido de construção amplo e duradouro.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

incursões

1. Dizem por aí que Freud descobriu a irracionalidade de homem comum. Não interessa se essa colocação é falsa ou não, não me importa se foi isso mesmo que ele quis dizer ou não. A irracionalidade da vida cotidiana é um ponto de partida interessante para as nossas reflexões essa noite. Afinal, sob o peso de todas as mazelas do mundo, das desgraças monumentais do finado século XX, e dos prenúncios sombrios de nossos tempos, quem conseguiria ver qualquer sentido em "bailar na superfície estética do mundo" numa vida consumista vazia de sentido e de afetos reais e significativos? Pergunte ao Dr. Freud se é racional encher o cu de cocaína e trabalhar por horas e horas em longos estudos que serão queimados mais tarde. É claro que não. Precisa a vida humana ser racional? A racionalidade da vida humana é praticamente uma impossibilidade. É claro, pode-se adotar um estilo de vida racional, regular os próprios atos afim de evitar o sofrimento ou obter algum tipo de prazer e satisfação. E é tudo. A vida pode ser racional em seus meios, mas jamais em suas finalidades.

sábado, 18 de abril de 2009

here, take a look fuckers



É interessante usar uma metáfora gravitacional para falar dessa situação; justamente porque parece que os nossos conceitos de organização social foram apreendidos de forma um tanto quanto gravitacional também: nós aprendemos que o mundo tal qual está aí é a necessária evolução do decurso da história, que ele era, digamos, inevitável. Mas ele não é! porra, ele não é!
Ei garotos, corram! Mudem a porra do mundo antes que ele mude vocês, antes que vocês virem troço.

terça-feira, 7 de abril de 2009

A formiga e a cigarra

Era uma vez um bosque. Nesse bosque haviam muitos formigueiros (evidentemente repletos de formigas de todos os tipos e tamanhos) e também haviam muitas cigarras.
As formigas do bosque eram especialmente atentas às aparências: gostavam de ternos bem cortados, sapatos sempre bem engraxados, cabelos penteados. Evitavam decotes, palavrões, saltos demasiado altos. Tinham horror aos escândalos e cenas públicas. Procuravam instruir os filhos para que se tornassem bons cidadãos, seguidores dos costumes, embora estes costumassem adotar, especialmente durante a juventude, os usos malcriados e rebeldes repugnados pelos pais. Uma vez passada a fase problématica, entretanto, a vida seguia seu curso normal . A maioria delas freqüentava aos cultos e missas no domingo. Todo o resto do bosque as tinha em conta de gente honesta, ordeira, e, via de regra, abonada.
No campo aparentemente oposto estavam as cigarras. Sempre tendo problemas com a polícia, sempre envolvidas com drogas, sempre atoladas em vícios e badernas diversas, mesmo quando famosas. Sim, pois as cigarras constituiam a classe artística por exelência do bosque. Houve época em que desde o cantor de butequim até os expoentes da indústria fonográfica eram cigarras. As formigas consideravam as cigarras repreeensíveis por muitas coisas, desde seus comportamentos sexuais inadequados até seu uso de protestar contra as medidas governo do bosque; mas, acima de tudo, as cigarras eram um mal exemplo por não trabalharem. Desde quando ficar aí pelas esquinas e pelos butecos é trabalho? Tocar e cantar todos nós podemos, e se ninguem fizer, não há de fazer falta também. E a vida que essa gente leva, então...?! Deus que me livre!
Para o resto do bosque, as coisas pareciam exatamente desse jeito, e no entanto, as coisas nem sempre ou raramente se passam da maneira como o vulgo as percebe. Hei de lhe mostrar agora dois personagens do Bosque, para explicar o que digo.
João Cigarrito era músico. Instrumentista por profisão e por paixão. Desde pequeno respirou música, por que em sua casa não faltava alguém para tomar o violão e tocar, e nem alguém que cantasse. Começou desde pequeno a lidar com os instrumentos, e, desde muito moço, animava os lugares que frequentava com canto e dedilhado de viola. Assim, os pais não ficaram exatamente surpresos quando ele disse que ia ser músico, embora a mãe quisesse mesmo que ele fizesse Direito, pra trabalhar com o Seu Formigôncio.
João Cigarrito andava deveras ocupado ultimamente. Para quem não sabe, se sustentar como músico não é nada fácil, especialmente num bosque de terceiro mundo. A necessidade de ganhar o pão de cada dia obrigava o João a se desdobrar em vários empregos, dando aulas particulares, tocando em barzinhos noite à fora, e até gravando jingles publicitários. João acordava cedo, pegava dois ônibus da árvore onde morava até o centro. Ia levando a vida, que, na opinião dele, era mais fácil com uma boa canção. “É como disse outro: quem tem a viola, pra se acompanhar...” A vida era simples, quiçá sofrida, mas feliz apesar de tudo.
Arthur Formigôncio era muitas coisas: Filho do Seu Formigôncio, bacharel em direito, administrador das empresas do pai. Arthur era uma formiga realmente respeitável. Acordava todo dia às nove da manhã, vestia um belo terno e ia para o trabalho num carro enorme. O trabalho de Arthur era administrar o dinheiro do pai, e, dizem os boatos, gastá-lo. Arthur havia se formado em Direito, pois pretendia seguir os passos do pai. Não passou no exame de ordem, dizem os boatos que por não ter se esforçado durante o curso. Também correm boatos de que o jovem teve problemas com drogas na adolescência, motivo pelo qual foi mandado para uma longa temporada num formigueiro distante, no norte. Seu Formigôncio certa feita chegou a processar um psicólogo que sugeriu que os problemas emocionais de Arthur tivessem alguma relação com o histórico de alcoolismo do pai e com os adultérios da mãe. Mesmo quando adulto, Artur parece não ter se recuperado de uma gripe pega na época da viagem, motivo pelo qual estava sempre com o nariz escorrendo. Um dia, aparentemente entediado com suas longas férias, Arthur deixou seu apartamento para não mais voltar. Dizem os boatos que foi encontrado morto num beco atrás de uma boate bem cara. Estava numa poça de vômito e sangue, com os olhos vidrados.

Moral da história: tolo é aquele que julga as pessoas pelas aparências e pela profissão.

quarta-feira, 25 de março de 2009

andores cibernéticos

Todo o esforço dos contadores de histórias, dos poetas e dos ilusionistas de todos os povos se condensa num objetivo simples: manter o espectador sem entender que poesia, arte, cultura, são feitos com reuniões condensadas de velhas imagens que os povos criam e carregam ao longo da história. São os velhos ídolos, sempre rearranjados, que mantem a força ao longo dos séculos, e que justamente por não terem autor nem início, provavelmente viverão enquanto houver ser humano. São os mesmos velhos santos que a multidão carrega, em andores cibernéticos.

domingo, 15 de março de 2009

disse frantz fanon

"Durante a colonização, o colonizado não pára de se libertar das nove da noite às seis da manhã."

quinta-feira, 12 de março de 2009

o balão branco

Quando eu era pequeno, seguia o costume das crianças de chorar por quase qualquer coisa. Meu pai não me consolava, dizia apenas que eu teria ocasiões bem piores para chorar ao longo da vida. Essa reminiscencia me veio quando assisti um filme sobre uma menina iraniana e suas peripécias e frustrações para conseguir um maldito peixinho branco (chama-se O balão branco). O filme, apesar de não ter explosões nem efeitos especiais teve a capacidade de prender e angustiar a mim e aos outros durante umas boas horas.
Minha explicação para isso é de que, apesar de todas as certezas adultas do avanço econômico, do progresso científico, da classe média, da salvação das almas, todos nós temos a leve sensação de estarmos nos debatendo atrás de alguns peixes brancos. E com o detalhe perverso de não sabermos se eles existem ou não na verdade, ou se eles serão suficientes para nos dar felicidade perpétua.
Me perdoem o miserável estilo Lya Luft, não pretendo me tornar um escritor de metafísica para donas de casa, mas os tempos são árduos e áridos.
E os instantes verdadeiramente excruciantes da vida são aqueles nos quais percebemos o quanto a própria felicidade é miserável e irritante, via de regra fruto de um auto-engano deliberado e extremamente sofisticado.

quarta-feira, 11 de março de 2009

roda viva

Pá - pa . pa . rá

(...)

roda anão
roda gigante
roda dotô
roda pião

geral rodô derrepente
quando da grande explosão.

domingo, 8 de março de 2009

hapiness is a warm gun

Um dia quem sabe todas as pessoas do mundo acordem se sentindo plenamente satisfeitas. Logo o tédio tomaria conta do planeta, e as pessoas teriam fatalmente que arrumar algo pra fazer. Talvez todos os povos da terra concordassem que estava na hora de discutir a relação. Durante a conversa, massacres étnicos e sacanagens temporais viriam à tona. Um povo acusaria o outro, o outro replicaria, começaria o quebra pau. E tudo voltaria a ser como antes.

quinta-feira, 5 de março de 2009

O negrinho

3

O sol da manhã seguinte descobriu o negrinho deitado num canto do barracão. o sol através do zinco projetava pintas de luz em sua pele escura. Do lado de fora, Amélia lavava roupa; pra fora é claro, porque as dela mesmo já estavam todas limpas. tinha a sorte de morar bem ao lado do lugar onde as mulheres lavavam roupa, numa espécie de fonte bizarra composta de cacos de azulejos variados e abastecida por um caminhão pipa. A massa de mulheres reunidas em volta d'água emitia um certo zumbido, e um cheiro de flor e de sabão. À quem ouvisse, poderia lembrar o som de um mercado no Marrocos, ou na Espanha, sob o sol, com os panos coloridos se molhando e se secando regularmente.
Ao acordar o negrinho foi até Amélia. Não esperou ela voltar para casa, e nem o sol deixaria. Do lado de fora do barracão, o céu de setembro tinha um azul desbotado, "cor de enfado", como escreveu o primo. As nuvens ocupavam o céu de forma organizada, em pequenas porções, regularmente distribuídas, criando um efeito geométrico deveras monótono. Com os pés nas ruas de areia, o negrinho caminhou até amélia. Chegou tocando uma flauta de bambu, enrolado em panos de cores vivas e padrões geométricos, montado num leão. Chegou vestindo trapos, sem flauta nem coroa de rei africano, com os pés no chão. Avisou-lhe de que queria ficar por ali, por que não tinha casa nem mãe. Chamou-a à noite para um banquete em seu castelo, onde criadas mouras serviriam melancia, costelas de jacaré, feijões doces, farofa e Tâmaras.
Disse à ela que seus pais haviam morrido. Seu pai era bandido, mas sua mãe era católica. Uma boa católica. Seu pai era Aníbal, sua mãe era Atena. O barraco onde eles viviam havia sido tomado, e ele não tinha ninguém no mundo, só tinha ela. O templo de sua mãe continuava erguido sobre o monte, e à noite as pitonisas apareciam lá para proferir os oráculos. Seu pai estava em campanha, decerto invadindo Roma, mas mandaria setenta vezes setenta lanças para protegerem os dois, mandaria elefantes com batedores que levariam o cesto de roupa até em casa. O menino era pobre, mas era trabalhador. Levaria as roupas até em casa, ajudaria no que desse, guardaria à noite melhor que um cão de guarda. Só pedia em troca um teto e algum afeto.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O primo

2

A maldade se processa na mente de um modo sutil. As almas inocentes procuram afastar com tal pertinácia a ideia dos crimes horrendos que elas secretamente concebem que, às vezes, seus donos fazem as coisas acreditando-se vítimas acaso ou das circunstâncias. Era desse tipo a elaboração mental que fez o primo de Amélia cogitar trazê-la para o monte de poeira vermelha e caótica aonde acabou por brotar a capital do País. As figuras foram se juntando e formando um quadro que aquela consciência, ao ver, preferiu recuar e ignorar, tomada de terror que estava. A ideia era trazer a bela prima direito do sertão ignoto para o barraco de teto de zinco, de onde ela seria mandada para casar-se em troca do perdão das dívidas e da consequente tranquilidade. É claro que o bom homem não podia dormir em paz maquinando tal coisa, e é por isso que a ideia nem chegou à ser concebida direito. Foi logo abandonada como delírio maldoso.
Mas quem irá dizer que não havia um pouco dessa ideia quando ele fez vir a prima para o barracão, pouco mais de seis meses depois? Ela estava lá, e o curso natural dos acontecimentos acabaria levando à concretização do plano que sequer fora concebido, não fosse o acontecido naquele domingo. Agora, morto, o primo dormia o sono dos justos, sem se preocupar de ter feito tal coisa, e sem se preocupar mais com dívida alguma. A dívida foi paga com uma faca na barriga, com cacetete da GEB na nuca e assim por diante. Certamente não foi inútil trazer a prima; no fim das contas ela haveria de lhe providenciar uma cova rasa, que já é melhor que a vala comum.
Foi um homem bom, o primo. Só não fora bom o bastante. Outros foram mais atrozes, mais selvagens que ele, e como muitos outros com bolas pequenas demais ou grandes demais, acabou morrendo jovem.
Levou uma vida curta porém feliz, pobre porém livre. Como era esperto, acabou ganhando dinheiro. Teria ganho mais, se tivesse sido mais esperto e se mantido vivo. Vivia de fazer pequenas viagens numa velha Kombi. Trazia coisas de Minas e de Goiânia que vendia aos candangos. Nos últimos tempos tinha começado à trazer coisas que davam um barato diferente. Trazia um pouquinho pra ele e um pouquinho para vender pra uns amigos. Tinha até doutor que comprava, às vezes. Passava os dias entre procurar comida, ler Rimbaud, ficar doidão e jogar sinuca. As viagens provinham o que ele precisava pra viver, que não era muito.
Gostava de escrever, o primo. Escreveu um punhado de versos, todos num caderno antigo e soltando as folhas. Ultimamente tinha largado de escrever, porque sempre se sentia um pouco mal quando olhava os versos no caderno. Os versos pareciam suficientes talvez para compor a figura de um poeta meio vagabundo num texto de outra pessoa, mas por si mesmos eles não criavam um universo, não eram completos em si mesmos. Ele pensava: a escrita tem que criar um mundo. A escrita é fraca e lenta, como uma caminhada. Ela não é impressionante como uma música ou um filme, e a única vantagem dela é, justamente como numa caminhada, poder visitar os cantinhos e becos que não são acessíveis aos outros meios. Assim se sentia o primo nas noites longas à beira do lago.
Mas ultimamente as coisas tinham ficado feias. É que ficar doidão parecia ser muito melhor que as outras coisas. Passear com o cachorro e fumar um baseado à noite era de fato uma ideia muito atraente, bem melhor que uma esposa sempre reclamando e crianças com a fralda à trocar.
As coisas aconteceram depressa, logo que ele saiu da cidade livre e foi para o que depois seria chamado de vila planalto. Entrou em desacordo com uns caras da vizinhança, que logo lhe tomaram a Kombi, na base da ameaça; teria acabado como capanga e empregado daquela gente, se não tivesse acabado morto. O problema todo é que os negócios tinham ficado muito famosos na cidade livre. Quando começaram a aparecer filhos de delegados para comprar, ele soube que era hora de cair fora dali.
Por fim, morreu cedo, antes dos trinta. E tudo o que deixou foi um pequeno baú com textos e um livro incompleto sobre a vida no sertão. Dentro do bauzinho havia ainda algum dinheiro e um saquinho de marafa. Deixou também a prima dentro de um barracão de zinco, com um menino negrinho todo estatelado, cheio de marcas de pancada.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Amélia

1

Era quase noite quando Amélia saiu da mercearia. A música que cantava sobre bancas de revistas, coca-cola e preguiça ia se perdendo entre os outros sons do ambiente quando foi definitivamente quebrada pelo som de tiros. Nada haveria nisso de anormal, mas os tiros vieram de perto, e foram terminar enfiados na parede alaranjada de poeira bem atrás da cabeça dela, parede essa que deveria ser uma das poucas de alvenaria daquelas redondezas. Eles estancaram. Amélia e seu primo. Amélia olhou os buracos na parede e sentiu-os como se fossem na própria pele. Às vezes o desespero tem esse efeito de aguçar as sensações da gente. Ainda que os tiros não fossem para ela, e ela sabia que não eram, ela sabia que de onde vieram aqueles poderiam vir ainda alguns outros, e que o dono do dedo que apertou o gatilho poderia rapidamente mudar de ideia. A violência é a melhor forma de convencimento que existe.
Naquela hora, tudo que Amélia queria era os tiros parassem. Não lhe importava mais a honra, nem o corpo, nem as chaves do barraco de madeira coberto com zinco onde ela morava, ali perto. Os donos dos tiros apareceram logo. Um homem baixo e troncudo, sem camisa e usando uma calça jeans apertada com chinelo de borracha. Seu rosto retorcido de raiva e de álcool lembrava as árvores baixas que cercavam a terra vermelha do acampamento. Ao lado dele, mais três homens completavam o quadro que surgiu por detrás da nuvem de poeira vermelha.
Os homens murmuravam algo entre si; logo o primo largou Amélia encostada na parede e foi ter com eles. O homem baixo cuspiu diante dos pés do primo de Amélia. Falaram qualquer coisa entre si, e ele entregou a arma à um dos que andavam com ele. Pegou uma faca comprida e parcialmente enferrujada, com um cabo tosco de madeira, que parecia ter sido feito em casa. O primo de Amélia sacou outra faca semelhante, que estava em sua cintura. Enquanto a crescente multidão se reunia em torno deles, um dos homens sem camisa agarrou os braços de Amélia por trás, obrigando-a a assistir o martírio do único homem do mesmo sangue que ela. O rádio não emitia mais os acordes preguiçosos de Caetano, mas a voz áspera de algum cantor esquecido.
Ao fim do evento, o vestido branco se Amélia exibiria uma espécie de mural com as cores daquele domingo: por baixo o alaranjado da poeira cheia de ferro, depois as manchas de bebida obtidas na mercearia, depois o preto das mãos sujas de graxa do homem, que, a essa altura, além segurá-la apalpava seus seios e todo o seu corpo.
A luta prosseguia. Ora um avançava, ora outro. Ambos estavam cheios de cortes e com uma camada de sangue já seco sobre a pele quando apareceram os homens da GEB. Estes desceram de um camburão, alguns armados com porretes, outros com fuzis. Enquanto estes atiravam, aqueles, mais ativos, distribuíam fartas pancadas na multidão que rapidamente se dispersava. Amélia viu um menino de quinze anos correndo no meio da confusão. Ele inclinava o corpo e tentava proteger a cabeça enquanto corria, mas a fuga foi impedida por uma cacetada certeira do guarda. Voaram sangue, voaram dentes do menino. Antes que seu corpo desabasse no chão, a sola de um coturno imprimiu uma marca dolorosa em suas costas. O povo todo escafedeu-se. No chão ficaram o primo da moça, esfaqueado e porreteado, e o outro. Amélia, que tinha saído relativamente ilesa, deitou-se no chão ao lado do primo; este jazia quente e inerte no chão. A poeira que baixava lentamente se acumulava sobre o corpo do rapaz, formando uma espécie de casca ao se misturar com o sangue. Amélia deixou ali suas lágrimas, que ela sabia que seriam o único tipo de serviço funerário que rapaz receberia. Arrastou o corpo até a porta do barracão, e, sentada na soleira da porta viu chegar o menino. Ela sequer notara que estava sendo seguida. Junto dela e do corpo, ele mal conseguia falar. Chorava e se enrolava com um feto no útero, apenas.
As dez da noite, o estranho mural estava completo: Sobre o pano a poeira, sobre a poeira o licor, sobre o licor a graxa, e sobre a graxa o sangue.
Uma vela estava acesa sobre o menino, que limpava os ferimentos numa bacia de alumínio cheia d'água avermelhada de sangue e poeira. Outra vela estava acesa sobre Amélia, que, apesar da desgraça toda, lavava o vestido, que além daquele ela só tinha mais outro. Lavava o vestido numa tina semelhante à do menino, enquanto chorava.
Enquanto chorava, matutava na morte do primo, e no que seria dela dali pra frente. O primo morreu por conta de dívida, não há dúvida. Suspeitou por um momento que ela mesma fizesse parte do arranjo. Mulher por ali era coisa rara. Mas ele não teve coragem de a entregar. Se Amélia fosse parar na mão daquela gente, terminaria na frente de uma fila de homens sedentos, em alguma casa famosa.
Bom primo! Os pensamentos iam ficando turvos como a água da tina, até cessarem por força da exaustação.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Eu sentado aqui sob esse sol,
Com meia garrafa de café no espírito

Escuto os lamentos desses mulatos tristes
E rumino alguma estória triste

Que em breve vos entregarei,
Meus poucos, ávidos e infalíveis leitores.

Jzaz Verballia (ou, poema frito à graça aranha)


Tipográfico pra caralho.


Parece um grilo usando tênis.
Aos poucos as letras passam a ser apenas
risquinhos divertidos no papel





1



Eu aqui fritando só
E ela vem pra mim e diz:

ahuhau
akemi diz:
tbm kero


E eu grito

Menina, você ri como um demônio!







2


Não se convém deixar levar por tais demônios, porque.... os cabelos de seda de M. eram rasgados pelo som das teclas.

A melodia da sua voz era interrompida pelos canhões.
ANTES, houve quem quisesse que em vez de louvar à Marília, nas suas odes, o aedo louvasse ao Deus e à Deusa pelo Amor.

Ao que ele respondeu: São eles por acaso quem deitam sobre mim o calor do sol em plena noite fria ? São eles que curam minhas angústias com uma palavra amiga ?

- Louvarei à minha amada em minhas Odes, e à mais ninguém.

- Suas mensagens em meu celular são para mim toda a poesia das esferas elevadas.

e pelos



etc


etc


etc


etc

etc

etc

etc

da vida à dois

O Amor
se esvaiu


e no fim restaram as cantigas populares .





c


Minhas mãos sujas trazem o gosto da rua, gosto de vida.

Esse c parece um espermatozóide oblíquo admirando-se da própria potencialidade.

30% de poesia sobre a rua , 60% de rua ela mesma, 10% de poesia replicante, cheia de porcentagens.






4



- Precisa-se de palavras claras, que saibam sambar, que saibam limpar e passar, para me ajudar na faina diária. Palavras confusas me ajudariam apenas a lembrar de gentes inconclusas.

- papai, aconteceu ontem, eu fiz umas rimas ruins.

- ....


- Querida, acho que temos que levar esse menino no médico, pra tomar a anti-poética.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ouvindo beatles

O teu cérebro está ficando cada dia mais lento. Sinto uma degradação. Nada dos sentidos duplos, dos corredores largos, dos conceitos fartos de outrora. Essa época chuvosa costuma representar uma seca nas tuas ideias. É claro que as ideias continuam existindo. O problema todo é o hábito essencial de prestar atenção nelas, que se perde quando se está à muito tempo sem criar nada. Viver sem pensar é uma coisa realmente deliciosa. Para mim, pensar é mais ou menos o mesmo que escovar os dentes: não se trata de iluminações momentâneas geniais, mas esforços constantes, sistemáticos, que acabam formando um hábito. Um gênio é o fruto de anos e anos de laboração e de atenção às próprias ideias. Não tem nada a ver também com o trabalho intelectual em si; é um hábito ainda mais intimo, que não pode ser incentivado por nenhuma imposição externa. Viver sem pensar é o mesmo, mentalmente, que acordar e não arrumar a cama, almoçar e não lavar a louça, e, ao invés disso, deitar no sofá para assistir tevê. A diferença toda é que, se você não lava a louça e não leva o lixo pra baixo, aos poucos começam a aparecer baratas, moscas, lagartos, e toda a fauna e flora própria e peculiar dos ambientes imundos. Já com a mente acontece o contrário: os pensamentos se tornam estéreis. Aos poucos, qualquer fiapo de ideia começa a ficar raro. O lugar todo se torna deserto. E aí as coisas da vida real começam a parecer simples e desbotadas. A vida parece ser simples, o bom parece ser apenas bom, e os maus merecem apenas punição.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Um slogan para Barack

- Para que as eleições não passem em branco, vote Obama.


***

I'm so sorry, guys. I was too high for writting, yesterday.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

high as fuck



motivationals - aqueles quadros que você vê em escritórios de dentistas, secretarias de escolas...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

sobre blogs, queijos e epígonos

Por que não ler blogs? Porque não, em vez de comprar montes de folhas com assinaturas célebres, se perder nos corredores úmidos e difusos das páginas de um monitor qualquer? Não como fonte única, mas como complemento...

Também o leite pasteurizado trás lá indicações de não ser utilizado como única fonte de alimentação do lactente. A "blogsfera" é como o leite, como a via láctea. Uma dispersão (ou um colóide), comum, cotidiano, sem forma definida, líquido, quase gasoso.

Já os livros prontos e celebrizados e estabelecidos são como o queijo: fechados, sólidos, à venda nas feiras e nas boutiques. Até nisso os livros e os queijos se parecem: os mais caros costumam ser os mais embolorados, e são também os de sabor mais apurado.

Hoje empreendi um passeio curioso por entre essa flora jovem e delicada dos blogs. É estranho pra mim pensar que toda essa via láctea será espremida, coada, até chegar numa certa nata, que dificilmente corresponderá ao melhor ou mais original de tudo que foi engendrado pelas nossas mãos. E dessa nata será feito o queijo, e o queijo será consumido dentro do pãozinho francês da nossa mesquinha experiência cotidiana.

O que será feito da produção literária da nossa geração? Será que o século XXI está condenado eternamente à ler "Marley e Eu" ? Haverão Flauberts, haverão Guimarães Rosas, haverão Machadões e Drummonds, haverão Wildes e Tolstois do nosso século? Certamente que haverão. Mas talvez eles estejam fadados à morrer de infarto numa repartição pública aos sessenta anos, ou à morrer de fome enquanto o mundo lê Paris Hilton. Não há nada de mal na Paris Hilton. Admiro aqueles que fazem mais que aqueles que ficam da margem olhando. Mas me angustia pensar na quantidade de beleza perdida num caso desses.

Será que um dia publicarão nossas cartas? Ou melhor, será que um dia publicarão nossas conversas no msn? Não subestimem as conversas no msn. Delas brotam idéias geniais. Acho mesmo que delas virão coisas que assombrarão o espírito do nosso tempo.

E brasília? Um velho tocador de alaúde um dia disse que, daqui à cem anos, seremos o centro cultural do Brasil. Eu desconfio que não, mas penso que talvez sim. Uma Florença no meio do cerrado, com o Paranoá à guisa de Arno...

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

ouvindo caetano

.
Deitar de bruços no chão gelado da vida real
É realmente dar um abraço apertado no mundo crú, fértil e mau.
.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

ouvindo cocteau twins

O ar seco e úmido, fresco e verde queimou minha retina. Preciso me esquecer em algum ofício, em algum outro mar, em algum amor alhures.

+

Ontem de madrugada nós fomos até a beira de um precipício, e lá havia uma flor. As mãos hesitaram em matá-la, mas acabaram matando-a. A flor se entregou, e nós nos entregamos à ela. Por horas seguidas nos perdemos no perfume suabilíssimo, misturado com seiva jovem, o quase não-perfume dela. Aquele perfume nos levou à lugares recônditos e sombreados da infância, à beira de um rio, dentro da mata virgem.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

comida de gigante

A menina estava acostumada à ver as multidões. Ossos do ofício alheio. De cima do palanque, as multidões de indivíduos tomavam um aspecto de uniformidade, que variava conforme o lugar, o momento, a tendência política dos demagogos em questão. Ao longo dos anos, a menina e seu amigo haviam criado um jogo que consistia em tentar definir a região de onde era aquela multidão pelo aspecto que ela tinha nas fotos de revista. Da última vez que eles jogaram, a menina perdeu. Confundiu a torcida da Ferrari com a platéia de um discurso do Stalin.
Muitas vezes a menina pensou nas multidões como comida de gigante. Aquele amontoado de seres humanos lhe lembrava um pacote de algum salgadinho. Ela imaginava como seria se todos estivessem dentro de um saco enorme, do tamanho de um prédio, e algum gigante metesse a mão lá e pegasse um punhado de vez em quando para comer. Os adultos gordos ficariam por cima no pacote. Seriam os bocados mais saborosos. Talvez uns três deles fossem suficientes para encher a bocarra de um gigante.
Aí, conforme o pacote fosse esvaziando, no fundo ficariam os menorezinhos. Os gigantes encheriam a mão com vários deles. Talvez até colocassem ketchup daqueles de sachê, o que no caso de um gigante deveria ser mais ou menos um contêiner inteiro, daqueles de navio, cheio de ketchup. Por fim restariam os bebês, que junto com os pedaços de gente perdidos no saco formariam um tipo de farelo, que o gigante em questão viraria do pacote direto na boca, finda a refeição.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Mas tudo isso não passa de um truísmo neo platônico, afinal... as únicas coisas reais que existem são essa areia quente e esse sol.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A monarquia não sobrevive à um estômago vazio, e nenhuma revolução pode se manter depois de alguns bons banquetes.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

As frases de efeito, como tudo mais nesse mundo, possuem uma fórmula própria. Qualquer imbecil pode criá-las à vontade, e as maiores sandices podem parecer, aos tolos, verdades excelsas. Uma boa piada pode ser feita dizendo-se asneiras como se fossem pensamentos célebres. Eis alguns (próprios e colhidos por aí, pois os há à farta):

"Um homem sem conhecimento é como um selvagem da mata"
" Bah, fatos... pode-se provar qualquer coisa com eles!"
"Ama ao teu próximo como a ti mesmo"
"Você tentou e falhou miseravelmente. Moral da história: da próxima vez não tente"
"É preciso dizer a verdade apenas a quem não pode compreendê-la"

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

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Today my aunt told about an amusing artist called Silbert Chaudanne. He is (my aunt believes that he still living today, though she's not sure about it) an french-born painter who mooved, at some point of his life, to Vitória. My aunt knew him in the university (she's an artist too). He were recognized by his bohemian life (it seens that he were alcohool adicted) and by his peculiar smell.
My aunt bought, many years ago and for a cheap price, an madonna performed by him in the early 90's. This paint still today in her house, and always caused an strong inpression on me, since I was a little child. Today I spent a long time looking that paint, after we talked about it. According to my aunt, Mr. Chaudanne painted a long series of maddonas by that time. He were deeply envolved in some kind of aesthetical and spiritual search for the holly grail while painting, and all these things happened quite before of the Da Vinci's Code.

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Para os íntimos:

Também Olavo de Carvalho deveria ser expulso dos certames e açoitado.

Muita instrução não ensina a ter inteligência; pois teria ensinado FHC e outros.

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terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Outro dia eu passava no cais à noite. Um pescador que chegava me olhou com seus olhos turvos pela catarata e me disse o seguinte:

"Aquele que troca o caminho por um atalho,
No cú merece um bom caralho."

E é assim que um pescador é capaz de explicar as bolhas financeiras, acrescentando uma medida punitiva, e tudo em verso.

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A linguagem é um bordel sujo, onde as coisas se escondem atrás de panos velhos, o chão tem buracos e a atmosfera é cheia de fumaça. Nesse lugar estranho o Eu é um dos quartos mais mocados, escondido atrás de escadas e corredores apertados. Quando alguém por exemplo diz: "minha perna tá arranhada" ou "tô com um troço na pele", é um uso da linguagem totalmente diferente de quando se diz "estou doente." A última frase exprime algo do tipo "sou eu mesmo, não minha perna, não minha pele, nada externo à mim, nada que pode ser usado como objeto da frase, que está doente." As pessoas dizem "estou doente" quando estão com a garganta inflamada, ou com uma dor de cabeça muito forte, ou gripadas, mas não dizem isso se estiverem com um corte infeccionado. Pelo visto, em português, o Eu se refere às entranhas do sujeito, da cintura pra cima.

domingo, 11 de janeiro de 2009

A festa nunca acaba.
As pessoas na praia continuam se debatendo entre os sargaços, os peixes mortos, a música de churrascaria. O sol queima soberano, inclemente.


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É uma favela bem fodida, e que tem um cheiro acre por causa da rocha calcária onde foi erguida.
Éum cheiro acre e adocicado. Não sei se você vai chegar a sentir isso na vida, mas é estranho, o chão tem um cheiro que vai impregnando as pessoas aos poucos. É uma gente marcada.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Sinto-me soberbamente feliz com as beberragens de fim de ano. Gostaria de desejar à todos os seres humanos mais um período trezentos e sessenta e cinco dias de fúria. Que nós saibamos render o Eão, fazê-lo tombar sob o império da nossa vontade. Que o caos cotidiano seja a mais bela arena para o brilho do espírito humano, e etcéteras variadas. Chega de frases de efeito ocas por 2008. As cortinas se abrirão uma vez mais para quem não se afogar nas sete ondinhas, não sufocar com os caroços de uva, não enfartar com os acepipes de fim de ano. No mais é isso. Celebremos a herança dos antigos cultos africanos, nos vestindo de branco e indo para a praia.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A voz e a garoa no mundo da Canaleta ( p. III )

A porta principal, por onde João havia entrado, estava fechada. As mãos trêmulas e arranhadas ainda chegaram a forçar a barra, de modo a confirmar a fatalidade de estar fechada. João quase entendia o horror de um passarinho preso numa arapuca. Foi até o banheiro, lavou o rosto, urinou. João gostava de observar a urina amarela escorrendo suavemente pelas paredes de louça branca e gélida do mictório; quando urinava, o fazia de forma que a urina batesse meio de lado na louça, de forma à não espirrar, à escorrer lindamente pela parede, como se o jato estivesse sendo achatado, não espatifado. O jato seguia, descendo pelas paredes até o fundo, onde se afunilava numa espécie de redemoinho que finalmente ia pelo ralo. Além disso, o prazer de aliviar a bexiga era corroborado pelo calor que aquecia as mãos, proveniente da parede do mictório, naquele instante de conforto. Saindo do banheiro, e já mais calmo, ele notou a entrada de um corredor que não havia visto antes. Como todo o resto da sala, aquele corredor estava escuro. João foi ao banheiro e acendeu as luzes, para tentar ver melhor. Ao voltar para o saguão, notou que o corredor dava numa rampa descendente. Entrou pelo corredor. No começo ainda havia alguma luz, mas depois de entrar na rampa esta acabou completamente. Com cuidado, avançando colado à parede, joão avançou pela rampa, que deu numa saleta com um par de sofás velhos e uma mesinha de centro. A saleta na verdade não era nada mais que uma junção de corredores; um deles era pequeno e cheio de portas de camarins. Um outro continuava descendo, e o terceiro era a rampa por onde João descera. Desceu pela rampa. Ao fim dela havia um corredor, e, no fim desta, uma sala que parecia uma mistura de almoxarifado com portaria. Acontece que a portaria era aberta, e dava para aquilo que parecia ser uma garagem ou um pátio, porque tinha vários veículos parados, chão de paralelepípedos e grades no alto do teto, que davam para um céu noturno nublado. João seguiu por esse lugar até um portão de ferro, trancado. João chegou ao portão e o forçou para o lado, mas este estava impedido de deslizar sobre os trilhos por uma corrente. A rua ali tão próxima! Uma mera chapa de aço e algumas lanças o separando da liberdade da rua, da jornada para casa! João deu um grito, chutou o portão, machucou o pé e por isso gritou de novo. Parado ali, já sentindo o vento frio de uma chuva que chegava, os gritos se transformavam lentamente num choro abafado de raiva e desespero. Eis que, no máximo dos tormentos, como num clichê romântico, surge de um canto escuro da escada um empregado do teatro. O infeliz, que dormia em uma cadeira desconfortável, acordou com os gritos e gemidos. Pegou o cassetete, com uma mão, e com a outra uma lanterna, e foi ver do que se tratava. Deu com João parado junto ao portão. Perguntou à ele, meio surpreso, o que ele fazia ali. João se encontrava por demais perturbado pra responder. A única reação obtida pelo funcionário era um gemido baixo e descontínuo. Ele disse que não era permitida a presença de gente ali, àquela hora. Foi até a corrente, abriu-a e rolou o portão para o lado. Somente aí foi que João percebeu o que estava acontecendo. Caminhou para fora, e tão logo chegou lá, o portão se fechou atrás dele, com uma pancada. A pancada captou e encerrou a agonia de João. O estrondo inicial ardeu no ar ao mesmo tempo em que uma golfada de sofrimento encheu os pulmões da criatura. Enquanto o barulho ressoava e o ar estava cheio de som, e os pulmões estavam cheios de ar, João transitou nas estepes desoladas do desespero. Os pedregulhos da planície árida cortavam a sola dos pés, o vento frio e cheio de areia açoitava-lhe o corpo desnudo. Os mongóis, montados em seus cavalos, cravaram mil flechas no seu peito e o grito das harpias ecoava nos paredões de pedra cinzenta e disforme. Mas o som não ressoou para sempre. Alguns instantes depois ele era sugado daquele lugar horrendo, e dele só se viam os ecos distantes, como paisagens que se perdem no horizonte cobertas pela bruma. Logo só haviam os ecos do som, retumbando pelas paredes dos prédios próximos e pelo próprio corpo de João. Logo só havia o ar sendo solto pela garganta, levando embora aquela sensação horrível. O som finalmente parara. O ar era ocupado apenas pelas gotículas de chuva que começavam a cair, pelo som do vento manso batendo nas folhas das árvores. A golfada seguinte de ar encheu o peito e uma calma fresca e um pouco triste, mas aliviada, relaxada, com cor e cheiro de lavanda. Os sons nunca param de ressoar. Eles diminuem cada vez mais de força, mas estão sempre aí, pulsando pelo ar. E o ar respirado também sempre deixa alguma coisa nos pulmões de quem respira, como um resíduo e como um tijolo à mais na parede. As sensações amainam, se aproximam de zero sem jamais chegar lá; e no fim elas persistem de alguma forma, ressonando para sempre acumuladas no peito de quem sente. E logo só havia a rua, a canaleta, com uma chuva fina e melancólica. A chuva era tão fina que sequer caía; ao invés disso era arrastada rua abaixo pelo vento, descrevendo redemoinhos contra a luz amarela e insuficiente dos postes. João deu um grito de prazer por se ver do lado de fora daquela arapuca monstruosa na qual havia se convertido o teatro. A umidade farta saída da sua boca durante o grito se juntou à chuva que corria e se dissipou no ar da canaleta. A canaleta é digna de nota. Na verdade era uma rua; seguramente uma das ruas mais infelizes desse mundo. Se o leitor acaso quiser um passeio realmente melancólico, sugiro umas voltas pela canaleta, numa noite chuvosa. A rua começa no centro de brasília, passa por baixo de um dos shoppings podres ao lado da Rodoviária, se estende ao lado da entrada de serviço do teatro nacional, e vai desaguar junto aos muitos ministérios e autarquias, verdadeiros estuários onde proliferam seres nefastos, que mereceriam um capítulo à parte. A canaleta merece esse nome por várias razões. Uma delas é que, tendo a bacia e os afluentes que tem, ela funciona como um verdadeiro ralo: por ela escorre morbidamente toda sorte de detritos desse mundo, diariamente. Ela está comodamente colocada abaixo do nível do resto da paisagem, de forma a ocultar da beleza sorridente dos cartões postais de Brasília toda a imundície e a feiúra que por ali trafegam. Sim, imundice durante o dia, e feiúra e o grotesco durante à noite, com as putas baratas, e os mendigos, e os vendedores de crack... A beleza singela desses elementos não combina com o gosto neoplatônico e meio brega, meio delirante da Esplanada. A esplanada é lunar demais, feérica demais, para aturar esses personagens. Como eles persistissem em existir, foi preciso criar essa canaleta para onde eles pudessem escorrer. João apenas começava um passeio pela bela e melancólica noite da canaleta. O passeio feito por João, garanto que ele jamais o esqueceu. Estava desorientado, o coitado, não sabia deveria ir por um lado ou por outro, e por fim acabou descendo, não por alguma elaboração consciente, mas apenas porque era aquele o caminho que oferecia menor resistência ao passo. O clima era profundo, soberbo. Cuidando apenas escapar das mulheres sifilíticas que o abordavam, cuidando escapar de tropeçar em algum humano que se confundia com o pavimento, João andava. Cada passo era fecundo de reflexões novas e interessantes, e no ar pairava o cheiro inebriante da vida livre. O vento batia açoitava o corpo de João, açoitava as árvores, açoitava a terra inteira. E, ao açoitar os viventes perdidos naquela canaleta, o vento produzia um som, distinto demais para ser obra apenas do vento, mas orgânico demais para ter sido conduzido pela batuta de algum maestro no teatro que ia ficando para trás. Como uma folha arrastada pelo vento, João caminhava no mesmo sentido que as gotas d'água, que os pedaços de papel. E no mesmo sentido que o som. Este vinha crescendo, espreitando atrás dos postes. João logo identificou a melodia. Era uma ária de ópera. Falava sobre a vida numa canaleta parecida com aquela num país distante e frio. Era um trecho de Summertime, de Gershwin, que o vento trazia. E é por isso que, até hoje, as más línguas dessa cidade contam para os maus ouvidos a história de João, e de seu passeio colossal naquela noite da canaleta. E elas acrescentam, não sem um riso no canto da boca, que o mesmo passeio já foi muitas vezes acompanhadas da mesma trilha sonora, por vários Joões ao longo das noites. "É uma espécie de hino das canaletas desse mundo", dizem elas. É uma celebração.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A voz e a garoa no mundo da Canaleta ( p.II )

Era precisamente nesse estado de espírito que João estava naquela noite. O rio das angústias intimas de João escorria através da água que caía na chuva, escorria nas notas que iam sendo criadas uma após a outra pela batuta do maestro. Antônio viu João. E João viu em Antônio um caminho pra fora de si mesmo, um instrumento que daria forma à rebelião daquela enorme quantidade de raiva que ele acumulava dentro de si, como um dique que represa mais água do que pode conter com sua frágil estrutura. Antônio seria um instrumento, Antônio tinha a atmosfera de um pederasta violento e cínico. Antônio não viu em João mais que o rosto lerdo e infantil, as nádegas moles e esbranquiçadas, o membro pequeno e murcho. Antônio viu em João uma peça de carne embalada à vácuo. Foi assim, numa comunicação quase telepática, que ambos se levantaram quase simultaneamente e foram ao banheiro.
Se encontraram no corredor atrás da sala. Sem trocar uma palavra e nem se aproximarem muito, ambos entraram por uma porta ao lado do banheiro. Caminharam longamente pelos muitos corredores confusos existentes na parte do teatro ao qual o público não tem acesso. Passaram por várias saletas com sofás em tons variados de creme e marrom, que recendiam à charutos e outros tipos de cigarros de origem incerta; passaram por camarins e cochias, subiram escadas estreitas e caminharam por andaimes que se erguiam na imensidão da parte da sala que fica atrás dos anteparos do palco. E foi num desses andaimes, ao mesmo tempo escondidos e colocados como que num altar, que eles confluíram um para o outro. Ou assim pareceu ao autista. Para o palhaço foi mais uma foda brutal, ou melhor, várias fodas brutais. Para o autista foi um grito sarcástico de auto afirmação e auto-mutilação, uma rebelião contra a imposição social,um culto aos símbolos fálicos violentos. Disso tudo o palhaço só ouviu os uivos proferidos pela cômica figura deitada de bruços sob ele. E enquanto ouvia, o palhaço rezava para que a orquestra não parasse de tocar enquanto o autista gritava. Mas, subitamente, a orquestra terminou. O curto intervalo de tempo ocupado pelo ruído das palmas e gritos da platéia foi suficiente para que o palhaço calasse sua vítima, e depois recomeçasse a estranha dança com o cuidado de manter manto do silêncio sobre eles.
Chegaram ao fim. Ainda sem dizer palavra, o palhaço, Antônio, se recompôs em sua aura de dignidade social e de homem maduro. E foi calado que Antônio virou as costas para o autista, jogado sobre o compensado empoeirado do andaime. Ajeitou a flor na lapela, caminhou firmemente para a escada, desceu-a degrau por degrau, saiu pela lateral da coxia e foi embora. O autista, João, foi bem mais lento. Levantou-se, deu um urro, recolocou as calças não sem certa dificuldade. Caminhou trêmulo pelos andaimes. Sentiu um medo incrível ao olhar a pequena escada de ferro que teria de descer. Começou. assim que largou o compensado do andaime, parou. Desceu mais três degraus e parou novamente. Num ritmo que crescia com a proximidade do chão, João finalmente completou a jornada uma hora após começá-la. Andou pelo teatro, errando pelo grande espaço atrás da sala, atá atravessar a coxia. Ao chegar à saída da sala, que estava completamente vazia, João teve a horrenda surpresa de descobrir que a porta estava fechada. Teria de arrumar um jeito de sair daquele lugar. Seu corpo doía.
João subiu a rampa lateral da sala, mancando um pouco. A agressão estava feita. Mais saboroso seria ver a cara de espanto, os trejeitos cômicos de piedade que o estado deplorável de seu corpo suscitaria nas enfermeiras, mães, enfim, no aparato de cuidado e repressão, que protege ao mesmo tempo que oprime. A amplidão e a profundidade daquele abismo de sofrimento físico confortavam a alma de João. O prazer físico dos primeiros instantes do ato logo depois se transformou em pura dor. A situação toda punha à claro o ridículo que era ser tratado eternamente como uma criança, e o choque causado pelo estupro de uma criança dependia todo da ação e da vontade de João. A sensação de poder resultante abria um riso de escárnio e de satisfação naquele rosto. Pensando nessas coisas, João esquecia-se por momentos da situação urgente: era preciso encontrar a porta, sair daquele labirinto micênico onde ele havia se metido não para evitar o minotauro, mas para exibir orgulhosamente já sido atacado por um.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A voz e a garoa no mundo da Canaleta ( p. I )

Para a maioria dos vagabundos, traficantes, cafetões e adolescentes, parecia uma noite normal. Lá pelas duas da madrugada uma Land Rover pintada de branco, verde e vermelho, com uma sirene da polícia, apareceu no boteco. Era uma birosca caindo aos pedaços, onde se tomava cerveja e jogava sinuca. Havia lá uns quatro salões bem grandes, cheios de mesas de bilhar, com lâmpadas soltas e janelas precárias voltadas para a W3. Entre aquelas mesas se reunia toda a fauna supracitada: pequenos criminosos, aposentados bêbados, um ou outro adolescente descido do Pátio Brasil fazendo pose de malvado. A atmosfera era boa: não se viam muitas brigas, apesar das lendas de gente que morreu empalada com taco de sinuca na bunda. As caixinhas de som pregadas na parede tocavam Raulzito, Almir Sater ou Led Zeppelin, ao gosto da freguesia, e a cerveja era barata, ainda que não muito gelada. A polícia bateu lá atraída por denuncias de tráfico de drogas, porque era lá que uma parte dos filhos dos burocratas (e dos próprios burocratas) compravam maconha trazida das cidades satélites.
A polícia enfileirou os menores de idade na parede, deu baculejo em todos, mandou pra delegacia aqueles que estavam com bagulho no bolso, e mandou pra casa o restante. Os malandros presentes escafederam-se todos. Enquanto os adolescentes entravam no camburão, uma figura conversava com um dos policiais. Era um homem alto e magro, com rosto de feições italianas bem disfarçadas pela maquiagem exagerada, pela peruca vermelha e pelo nariz de palhaço. Devia ter uns quarenta e poucos anos. Seu nome era Antônio. Sua amizade com os agentes da lei era motivada por razões, digamos, profissionais. Além de trabalhar como palhaço num circo ambulante, Antônio se dedicava à atividades menos honradas nas horas vagas, como tráfico de rins e de mulheres.
Intimamente, Antônio repudiava essas atividades. Elas eram, para ele, uma forma de sustentar um hedonismo envergonhado. Antônio apreciava as coisas boas da vida: charutos cubanos, carrões, trajes de palhaço em linho egípcio. Ao mesmo tempo em que garantia mais alguns anos de vida a alcoólatras com dinheiro sobrando, às custas dos rins de indigentes recém-mortos, ele aliviava a consciência doando dinheiro para orfanatos da Igreja e fazendo criancinhas sorrir. Era uma alma boa. Seu fraco eram as crianças: não suportava vê-las tristes. Certa vez fora preso (mas liberado em seguida) por ter assassinado um pedófilo com o pé de uma cadeira.
Para a maioria dos garotos e garotas, parecia um dia normal. Lá pelas seis horas da tarde um ônibus escolar grande e amarelo, daqueles de filme americano, chegou na chácara da ONG e parou ao lado da casa onde eram realizadas as atividades. Enquanto as mulheres de colete azul ajudavam as crianças e adolescentes especiais a subir no ônibus, João olhava a cena quieto num canto. Há pessoas que militam em causas políticas, religiosas, ou até em causa própria. Aquelas mulheres militavam na causa dos cromossomos à mais. Aquela visita ocasional ao teatro havia ressuscitado nele a pose típica dos momentos de embaraço da infância, mas não por alguma razão explicável, premeditada, e sim por algum tipo de assombro não totalmente explicável.
Para a maioria dos músicos, ouvintes, vendedores de balas e mendigos presentes, parecia uma noite normal no teatro. A chuva fina que caía do lado de fora escorria suavemente pelas paredes do prédio em forma de pirâmide, nessa época privadas dos quadrados e retângulos de aço que costumavam criar um impedimento para aquelas águas. Naquela quinta feira, a sala estava repleta. Além dos ouvintes de sempre, as poltronas de veludo verde-encardido recebiam também convidados especiais, em todos os sentidos da palavra, inclusive nos politicamente corretos. Apesar da amenidade do léxico usado, juridicamente os "especiais" são tratados como verdadeiros cidadãos de segunda classe, sem poder guiar carros e nem mesmo se casar. Aos primeiros acordes de Mozart, João assume uma expressão vaga no rosto, com as mãos crispadas no braço da poltrona. A música transportava-o longe, ainda mais por que seus vínculos com o mundo dito real não serem tão fortes quanto os do resto das pessoas.
João vivia como um mímico. Sua condição criava paredes onde elas não existiam. E essas paredes por vezes ameaçavam esmagá-lo, tornando-se pequenas demais. João respondia com energia, e num esforço digno de um Sansão acorrentado, só que ao contrário, ele empurrava aquelas paredes para longe, afim de respirar. Acontece que esse ato heróico nem sempre era bem aceito. As vezes a rebelião de João contra seus próprios limites recebia como resposta um novo aperto, um novo sufocamento, dessa vez por parte de seus semelhantes; era quando a sociedade tratava de reaproximar as paredes, empurrando-as umas contra as outras sem se preocupar com o corpo frágil que está entre elas. João respondia com um novo impulso, afastando-as, contra a vontade dos outros. Nesses períodos, o efeito era o de uma sanfona; só que, ao invés da energia se dispersar, ela ia se acumulando. Os esmagamentos eram cada vez mais freqüentes, e os empurrões eram sempre mais violentos e súbitos. João extravasava sua ira às vezes de forma violenta, passiva, se entregando durante dias seguidos à prática do violino. João às vezes empurrava suas paredes descarregando quantidades enormes de raiva sobre o próprio corpo.