tag:blogger.com,1999:blog-55016125722148947762024-03-13T17:59:12.419+02:00lizard in the windowpaneAndré Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.comBlogger66125tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-69503486958845300882010-02-15T15:50:00.001+02:002010-02-15T16:01:40.976+02:00Planaltina e a crise política no DFNa terça feira (09/02) a OAB nacional, na pessoa de seu presidente Ophir Cavalcante, fez um pedido formal à procuradoria geral da república pedindo a prisão preventiva ou o afastamento do governador José Roberto Arruda. Cavalcante declarou sobre Arruda que "Sua permanência no cargo poderá ensejar dano efetivo à instrução processual", ou seja, segundo o presidente da OAB, a permanência de Arruda como governador pode ser danosa às investigações dos esquemas de corrupção, conduzidas atualmente pela Polícia Federal em sua operação Caixa de Pandora. <br /><br />Sob certa perspectiva, pode-se afirmar que Arruda já caiu. Expulso de seu partido, Arruda ficará pelo menos os próximos dois anos sem a possibilidade de ocupar qualquer cargo eletivo no Brasil. Mas não é isso que fundamenta a avaliação de sua queda. Ora, com pouco tempo restante de governo, e estando o GDF na ordem do dia da mídia e de órgãos de controle social como o Ministério Público Federal, Arruda está impossibilitado de perpetuar o real motivo de seu envolvimento com a política institucional, que é a acumulação de recursos para si e principalmente para os grupos empresariais que o apoiaram. Impossibilitado politicamente de começar novas obras ou de captar recursos externos (via BID, por exemplo), Arruda sofre também uma ação judicial impetrada na sexta feira (05) pela OAB nacional pedindo o bloqueio de seus bens e dos deputados distritais citados na Operação Caixa de Pandora, da PF. <br /><br />Historicamente, os setores empresariais buscam controlar o Estado, o qual passa então a atuar no sentido de viabilizar as operações em grande escala que são necessárias para manter o ritmo acelerado da acumulação de recursos. Sob esse aspecto, Arruda está impossibilitado de cumprir sua função. Os setores do empresariado que financiaram sua eleição e o apoiaram estão neste momento procurando um novo arranjo sob o qual possam manter o controle sobre o governo distrital, a fim de continuar contando com seu indispensável apoio para a realização de uns tantos Noroestes (atualmente, o símbolo mais vistoso dessas relações) no Distrito Federal. <br /><br />Onde fica Planaltina nesse momento? Qual a parte que lhe cabe nos intercâmbios de poder e de recursos mobilizados pela ação da política institucional? Repetindo aquilo que foi dito no primeiro parágrafo deste texto, a gestão de Arruda baseou-se na realização de grandes obras públicas. É através delas que Arruda garante o apoio dos setores da burguesia responsáveis por sua manutenção no poder. Basta lembrar que o vice-governador do DF, Paulo Octávio, é dono da maior imobiliária do Distrito Federal e mantém também grandes operações de incorporação e construção. <br /><br />Por esse motivo, é possível demonstrar que, durante o governo Arruda, A região de Planaltina e as cidades próximas receberam um volume substancialmente maior de investimentos em obras de infra-estrutura, se comparado com o governo anterior, sob o 4º mandato de Joaquim Roriz (2003-2006). Um texto publicado em 28/03/2006 (portanto, ao fim do último governo de Roriz, encerrado em março daquele ano) no site da administração regional de Planaltina traz a seguinte passagem, sobre a instalação de uma rede esgoto no bairro Arapoanga: “Serão implantados 81 quilômetros de redes, ramais condominiais, interceptor e linha de recalque, com 6,6 mil ligações prediais, beneficiando cerca de 30 mil pessoas. Os investimentos serão de R$ 7,8 milhões.” Num texto sobre as obras em Planaltina realizados pela gestão Arruda, colhido da página do GDF e publicado em 14/09/2007, pode-se ler o seguinte: “A região de Planaltina, Mestre D´Armas, Vale do Amanhecer e Arapoanga receberá investimento de R$ 48,6 milhões para melhorias em infra-estrutura. Planaltina e o condomínio Mestre D’Armas terão mais de R$ 11 milhões em obras e serviços de infra-estrutura, esporte, lazer, saúde e educação.” A comparação é ilustrativa apenas da diferença de escala entre as operações realizadas pelas gestões de Roriz e Arruda. <br /><br />Essa diferença de escala no volume investido em obras significa, em termos de capital político, uma mudança da percepção, pelo menos por parte da população, sobre a atenção dispensada a elas pelo poder institucional. Embora persistam em Planaltina, como em todo o DF, os grupos ligados à Roriz, estes se encontram bastante enfraquecidos diante da opinião pública em face do aumento do volume de recursos destinados à cidade. Roriz formou sua base de sustentação apoiando e fomentando ocupações ilegais de áreas públicas, que deram origem a verdadeiros “currais eleitorais” quadrilátero afora. Os beneficiários desse processo formam o grupo de apoio mais consistente do qual Roriz dispõe hoje. Quanto aos grupos de esquerda, sua capilarização em lugares como Planaltina é mínima. Basta constatar que, via de regra, no DF, os detentores de cargos eletivos ligados aos partidos percebidos como de esquerda têm sua base eleitoral principalmente entre a classe média, segmento presente, mas minoritário em Planaltina. <br /><br />Portanto, é altamente compreensível que uma parte da população de Planaltina avalie sua relação com o poder institucional sob o paradigma do “rouba, mas faz”. A despeito de toda a corrupção e de todas as conseqüências nefastas da gestão Arruda, é difícil argumentar sobre corrupção, neoliberalismo, degradação ambiental e destruição do planejamento urbano, com populações que percebem uma melhora sensível em suas condições de vida, dado o aumento da quantidade de recursos disponíveis para obras de infra-estrutura, pelo menos neste primeiro momento. <br /><br />Em verdade, seria necessário escrever todo um volume para listar os malefícios trazidos ao Distrito Federal e à Planaltina sob a égide do governo Arruda e de seu modelo privatizante e explorador. Em longo prazo, a manutenção deste modelo de gestão tem potencial quase ilimitado para degradar as condições de vida da maioria da população e para submetê-las ainda mais ao julgo da concentração de renda e da exploração pelo capital, que é a finalidade última dos governos neoliberais, e é também a forma através da qual eles mantêm as zonas periféricas das cidades e seus moradores submissos. <br /><br />O pensamento de uma parcela significativa da população de Planaltina entretanto parece passar longe dessas questões. Um expoente dessa linha de pensamento pode ser encontrado no jornal Recado News, que abrange a região da chamada saída norte (Sobradinho, Planaltina, Planaltina de Goiás, entre outras localidades). O editorial da edição de janeiro de 2010 (nº 170) tem por título “O entorno sofre com Brasília” e traz, em síntese, um ponto de vista segundo o qual o escândalo de corrupção estaria a impedir as melhorias conduzidas por Arruda na saída norte de continuarem, escândalo esse fomentado pela mídia e pelos grupos políticos de oposição ao governo, tendo em vista fins eleitorais, de forma injusta e indevida. Eis o trecho final do supracitado editorial: “Será que, depois do revés, as mudanças apontadas e já iniciadas continuarão ou o Entorno será, mais uma vez, vítima inocente de um fatídico esquema do qual (sic) nada tem a ver. Entorno sofre com Brasília.” <br /><br />Sobre esse veículo de comunicação é preciso pontuar algumas coisas. Em primeiro lugar, trata-se de um jornal cujo apoio ao governador Arruda é explícito. Nesta mesma edição, foi publicada uma página inteira (página 8) contendo uma carta redigida pelo governador sobre o escândalo de corrupção. Congruentemente, trata-se de um veículo francamente conservador. No mesmo número há uma matéria exaltando o movimento de expulsão de uma zona de prostituição de Planaltina por igrejas protestantes (“Marechal agora é ‘rua das igrejas’”, página 10), no qual os templos são descritos como “a parte boa da sociedade”. Seria portanto inverídico supor que maioria da população de Planaltina concorde totalmente com opiniões tão retrógradas e marcadas a favor de Arruda. Duas das fontes ouvidas confirmam episódios de vaias públicas, por parte da população de Planaltina, a deputados distritais oriundos da cidade e envolvidos com o esquema de corrupção investigado pela Polícia Federal. <br /><br />Por outro lado, conversas casuais com populares na cidade revelam que o ponto central do editorial do Recado News parece ser quase consensual, principalmente entre os moradores das áreas menos atendidas por equipamentos urbanos. A população se ressente de uma possível interrupção das obras de infra-estrutura. Douglas Alves, 18 anos, vendedor ambulante em uma barraca próxima à rodoviária de Planaltina, não se declarou favorável ao governador Arruda, mas expôs o seguinte em uma conversa informal: “É fácil pra vocês playboyzinho, que mora no plano, querer tirar o cara, mas ele colocou escola, melhorou o esgoto lá onde eu moro [no bairro Arapoanga]. Sem isso, como é que eu fico?”André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-87527624908285181292009-08-14T04:22:00.002+03:002009-08-14T04:37:41.955+03:00o circo p.IA hora de descer do palco é sempre a mais difícil. O trapezista ouvia as palmas do fim do espetáculo como um som misto, feito de júbilo mas também de agonia. O som prenunciava o cair da escuridão pesada sobre o palco, uma escuridão que com o seu peso, sua massa, expulsava todos eles para fora dali, para a colchia e por fim para o camarim, irresistível como um vento forte. Não que o trapezista amasse o palco, nem que tivesse medo do camarim. Mas o palco era o reino dele, era o lugar onde ele estava de certa forma sozinho com sua arte, seus anos de treino, seus músculos fortes. Naquele estrado tudo estava resolvido, e lá ele estava certo de que ninguém poderia interrompê-lo ou intervir no que ele fazia. Era o lugar onde só o trapezista existia. O palco comportava somente um corpo ágil com roupas coloridas. Ali não havia espaço para Antônio pai de duas filhas e separado da mulher, nem para João viciado em valium, nem para Carlos nem pra Marcos, nem para nenhum deles, apenas para o trapezista, o palhaço, o homem bala. <br /><br />E era por isso que era tão ruim descer o palco. Pois o trapezista sabia que já na colchia ele voltaria a ser Marcos, voltaria a ser Antônio, voltaria a ser João. E Antônio não era forte e artista como o trapezista. Antônio deixava as moedas caírem na hora de passar pela catraca do ônibus. Antônio não deslizava num vôo rítmico cheio de piruetas e fogos de artifício que encantavam as pessoas. Quando ouvia as palmas, o trapezista já sabia que um tipo diferente de demônio aguardava Antônio atrás das cortinas. <br /><br />As mãos dadas que agradeciam o público se desfaziam no momento exato em que a luz se apagava. Cada um carregava o seu próprio cansaço para um lado, ficando totalmente sozinhos. Naquela noite Antônio não voltou para o caminhão dentro do qual ficava seu camarim de trapezista. Trocou de roupa ali mesmo na cochia. Tirou a roupa de trapezista, que foi dobrada e gentilmente guardada dentro de uma sacola. Colocou as roupas de Antônio, apalpando sofregamente o bolso esquerdo da calça, onde a mão logrou encontrar intacta a única coisa que realmente importava para Antônio naquele momento, e que era uma pedrinha de haxixe. Era uma pedrinha escura e quadrada, pouco maior que o polegar de da mão direita de Antônio. Tinha um rosto de Odalisca impresso, fora trazida de um país muito distante e à muito custo. De fato, aquele tijolinho representava as economias de muito tempo. <br /><br />Antônio saiu debaixo da lona do circo direto para a rua, onde encontrou dois jovens que acompanhavam o circo. Os dois estavam entre a platéia que se dispersava depois do espetáculo. Eles rodavam malabares e seus olhos irradiavam uma alegria plena e infantil. Estavam envolvidos num tipo de jogo quando Antônio chegou. Um deles fazia uma graça com os malabares, que o outro depois tentava repetir. Ao mesmo tempo que divertia, o jogo cumpria uma função didática, já que forçava o jogador menos apto ao treino, tendo o outro por modelo. É claro que nenhum dos dois pensava nisso diretamente. O estado dos dois suscitava dúvidas nos pais de família presentes sobre se eles conseguiam pensar diretamente em alguma coisa naquela hora. Assim que Antônio apareceu os dois pararam o jogo e se voltaram para ele. Como Antônio era o único membro "de verdade" do circo que eles conheciam, havia um vínculo quase de vassalagem entre eles. <br /><br />Embora já estivessem acompanhando o circo à uns três meses, ainda se consideravam como viajantes independentes, e faziam questão de deixar essa condição clara em sua lida com os outros. Andavam sempre de mochila, por exemplo. E nunca acampavam no mesmo lugar onde o circo propriamente dito estava. Mas três meses já era bastante tempo, e a convivência já corroera um pouco o rigor da relação entre estranhos que eles mantiveram de início com Antônio, de forma que agora os três mantinham conversas que antes teriam parecido comprometedoras, embaraçosas e confusas, e que entretanto divertiam os três por longas horas de tédio, após o almoço, sob a lona. <br /><br />Os três deixaram o burburinho e as luzes amarelas do circo para trás, caminhando noite adentro em direção ao clarão no céu onde eles supunham ser o centro da cidade. Era um grupo estranho. O bom senso burguês diria se tratar de um trabalhador rural acompanhado por dois vendedores de artesanato da torre de TV. E foi lá mesmo que os três acabaram chegando, caminhando desde algum lugar ao longo do eixo monumental até o vazio noturno da esplanada. <br /><br />A caminhada durou pouco mais de uma hora. E num dos muitos momentos onde o grupo não se achava próximo de nenhuma construção nem nenhum ser humano que não estivesse num carro, o rapaz começou a discussão sobre liberdade. Era uma das longas conversas para matar o tempo. Ele falou uma frase bonita que havia lido em algum lugar, acho que para agradar Antônio, e a frase dizia mais ou menos que liberdade é estar aberto à tudo, mas não se apegar à porra alguma. Antônio gostou da frase, mas percebeu que não era do rapaz. Antônio gostava das conversas nem tanto por aquilo que era dito, senão pelas possibilidades que surgiam de fazer pequenos jogos verbais com o rapaz e a moça. E essa frase abria a ocasião para aquela brincadeira na qual Antônio ia inquirindo pequenas incoerências nas falas do rapaz. Antônio vencia se conseguia fazer com que o rapaz desse risadas nervosas e largasse mão daquele assunto, partindo pra outro. E o rapaz vencia se Antônio desse à entender que admirava sua cultura e seus pensamentos. Havia um tipo de acordo tácito entre eles de que aquele tipo de conversa não seria levado à sério totalmente. Nenhum dos três voltava à um assunto que já tivesse sido objeto daquele jogo, por exemplo. Por isso mesmo, a fronteira entre a idéia criada na hora e uma idéia séria era sempre turva. Às vezes fazia-se um esforço enfático para alinhar o tema à um dos dois lados, sobretudo quando se tratava de algo muito estapafúrdio ou de algo realmente considerado sério. Mas essas ocasiões costumavam ser aborrecidas para Antônio. Este se divertia realmente com o jogo quando haviam nuances e meias verdades no discurso, que precisavam ser interpretadas.<br /><br />A luz da manhã seguinte apanhou os três deitados nuns banquinhos de quadra. O rapaz e a moça dividiam um enquanto Antônio deitava no outro, logo ao lado. A noite anterior fora movimentada. A grande quantidade de haxixe fumada acabara por deformar um pouco as lembranças, de fato que Antônio guardava apenas um emaranhado de imagens, sons e sensações da noite que passou. Lembrava também de alguns rostos diferentes. Era sempre assim com o haxixe: primeiro vinha uma lembrança desorganizada e afetiva, como uma onda, que depois era organizada até constituir uma narrativa que explicasse as coisas de forma satisfatória, e que mesmo assim ele sabia que nunca era definitivamente correta.<br /><br />Os três sentaram num bar, logo que chegaram à cidade. Apesar de ser uma birosca voltada para a parte de trás de uma quadra comercial, haviam bastante mesas de plástico e todas elas estavam cheias de gente. A moça brincou com os malabares e chamou atenção de vários grupos de pessoas que estavam ali bebendo. Do bar, Antônio notou apenas que os blocos de apartamentos ali perto tinham um ar hostil e que a cerveja era cara. <br /><br />Lá pela uma da manhã o lugar fechou, dispersando os gatos pingados madrugada adentro. A moça e o rapaz conheceram um grupo que bebia no bar, e que depois acabou seguindo os três. Antônio saiu pela noite fria e mal iluminada com os outros, e à medida que caminhava seu desgosto daquela cidade ia aumentando. O ar frio machucava as narinas e a garganta. Por fim, acharam um pouso que agradou à todos. Era uma quadra de esportes totalmente destruída; ficava dentro de um descampado no meio das quadras. As pessoas do lugar haviam pego os troncos caídos de árvore e construído banquinhos. Antônio achou agradável estar num lugar tão singularmente humano e que por isso mesmo se destacava da paisagem em volta. <br /><br />Eles se sentaram lá e fumaram haxixe. O rapaz trazia um pequeno canivete com o qual tirou lasquinhas da droga. Alguém doou um cigarro de palha, que o rapaz desmanchou. O tabaco do cigarro foi misturado com haxixe e posto dentro de um grande cachimbo. Este era de madeira e tinha esculturas de durepóxi pintadas com tinta óleo e sementes coloridas. Era um pouco assustador, e talvez fizesse uma criança pequena chorar de medo, com sua pequena cara de demônio em cima do cabo. <br /><br />Todos ficaram muito loucos. O grupo que havia vindo do bar foi embora. Eram um menino e duas meninas, todos tinham uns 20 e poucos anos e eram simples vagabundos de Brasília. Não se conformavam em ficar em casa à noite e saíam por aí conhecendo todo tipo de gente que se pudesse achar pela madrugada. Tinham um ar entediado e seus corpos eram meio pálidos, porque nunca andavam durante o dia. Falavam num linguajar peculiar, que misturava os inícios de uma erudição livresca com falares extravagantes recolhidos ou criados especialmente para esse fim. Se diziam adeptos de práticas sexuais pouco comuns e pareciam fornicar muito entre si. A moça notou que o menino, que se chamava Danilo, tinha um ar meio afeminado. Os três contavam estórias de outras madrugadas enquanto Antônio e o rapaz, doidões de haxixe, pegavam madeira pelo descampado para fazer uma fogueira. <br /><br />- Teve aquela vez que a gente caiu na casa daquela guria louca. Velho, a mina chamou todo mundo pra casa da tia dela, que tava vazia. Tinha umas 15 pessoas lá e era todo mundo desconhecido, estranho mesmo. E ela tava muito louca. Tava tocando dorival caymmi mas ela dançava como se fosse psy trance, sei lá. Ela levou o danilinho pro quarto e chupou ele até o coitado ficar com o piruzinho ardendo (risos). Ela deu sorte de só ter gente boa, por que se tivesse alguém com maldade do coração podia ter roubado todas as coisas dela!<br /><br />O tom da conversa aumentava sempre mais, acompanhando o fogo que ficava sempre mais forte. De repente o menino fez silêncio e fez sinal para que os outros silenciassem também. E no silêncio que se fez eles escutavam apenas as toras de madeira pegando fogo e o barulho de cascos de cavalo contra o chão de concreto da calçada. Era uma dupla de policiais montados à cavalo que passava desfilando uniformes pretos e agressivos, acentuando o caráter feudal da cidade. <br />- Esses porras tão passando direto por aqui. Tem uma galera que já rodou com esses canas de cavalo. E o foda é que nem dá pra tentar fugir, por que à cavalo dá pra entrar dentro da jamaica. Na viatura dá até pra vazar quando os canas tão chegando, mas de cavalo é foda. <br /><br />O grupo de brasilienses foi embora lá pelas 3 ou 4 da manhã. Convidaram a moça e o rapaz para ir com eles, provavelmente para a casa ou apartamento de um deles. Como eles recusaram, só restou aos infantes irem embora se chupar em outro canto. O rapaz e a moça foram para uma parte mais escura da jamaica, deixando Antônio sozinho diante do fogo. Àquela altura, Antônio não se lembrava nem em que parte do mundo estava. Divertia sua mente pensando em como seria ver o mundo através das pupilas opacas de um cachorro morto. Nessas horas, Antônio apenas sentia. Sentia o frio nas costas e o leve calor do fogo na parte da frente do corpo. Sentia o chão da quadra onde estava deitado. Uma semente de alguma daquelas árvores embaixo das suas costas, ou quem sabe uma pedrinha. E absolutamente, quando ficava assim, sentia que pertencia organicamente àquele lugar, fosse onde fosse. Sentia que se ele saísse dali faria um buraco no mundo que sangraria até se acomodar novamente sem ele. Sempre que ele ficava assim lhe vinha à mente aquela imagem que ele viu um dia. de um cachorro morto. Era no meio de Minas, no acostamento de uma estrada, num lugar que parecia o alto de um morro. Um cachorro preto estendido do lado da estrada, morto sob o sol de meio dia. Não fora atropelado, mas estava lá morto. Devia estar lá à uns três dias. Antônio viu aquilo quando criança e a cena nunca lhe saiu da cabeça. Particularmente os olhos do cão estavam fortemente impressos na memória; junto com várias outras lembranças mais ou menos sem sentido da infância. E Antônio ficou pensando nisso até adormecer ao lado do fogo.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-24525254962899994252009-06-28T04:58:00.000+03:002009-06-28T04:59:46.541+03:00Tout ébranler pour conaître l'innebranlable"Era um espetáculo. Tinha algo de vento forte na mata, arrancando e fazendo redemoinhar ramos e folhas; caía depois sobre a cidade para bater sobre as vidraças, abri-las ou despedaçá-las, espalhando-se pelas casas, derrubando tudo; quando parecia chegando ao fim do mundo, ia abrandando, convertia-se em brisa vesperal, cheia de doçura. Só então se percebia que era música, sempre fora música".André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-50140967985159171082009-06-22T04:21:00.001+03:002009-06-22T04:22:46.470+03:00prostitutas ( I )Eu vinha atravessando a quadra. O inverno em Brasília oferece certos desagrados que são únicos no mundo. Nas sombras dos blocos, nos estacionamentos feios e sem árvores das quatrocentos, o frio era incômodo, e era possível ouvir as pessoas que acordavam. No sol, era possível sentir a pele ardendo depois de algum tempo. E em ambos os lugares era inevitável sentir o vento seco e frio que fazia minha garganta sangrar. O açoite do vento trazia consigo um gosto incômodo de noite. <br /><br />Foi numa manhã fria de junho. O céu estava totalmente azul, o sol brilhava pálido esquentando o asfalto, e entretanto fazia frio. As mães desciam dos blocos trazendo as crianças para tomar sol no parquinho. Mas naquele parquinho não havia nenhuma criança. Nenhuma mãe ou avó responsável levaria uma criança para brincar perto daqueles três personagens. <br /><br />Os três estavam em um banquinho na quatrocentos e onze que durante a semana era usado por um grupo de mecânicos de rua. Hoje os mecânicos não estavam lá, deviam estar em casa com a família, engordando. Tudo que a cidade tinha para substituir os mecânicos eram esses três, duas mulheres e um rapaz. <br /><br />O rapaz estava deitado no chão sob o sol, de barriga para cima, com as pernas abertas e os joelhos dobrados. Na barriga, em cima da camisa do São Paulo, ele tinha um celular que tocava uma música num volume alto. A música era um pop indistinto, cantada por uma voz feminina, em inglês. Era aquele tipo de voz que se manteve constante na música pop anglo-saxã dos últimos 30 anos, com pequenas variações mas se mantendo sempre a mesma. A música como um todo, aliás, seguia o mesmo padrão. Em última instância, o personagem como um todo seguia aquele mesmo padrão. Indistinto, algo pasteurizado. Um rosto desconhecido e no entanto igual à milhares de outros que eu já vi. Aquilo me incomodava. <br /><br />As moças estavam sentadas no banquinho da quadra. Eram bem diferentes entre si, embora tivessem uma familiaridade entre si e com o rapaz também. Uma delas era bem gorda. Vestia uma minissaia púrpura, de um tecido enrugado e estranho, e um top verde. Tinha cabelos longos, pretos e encaracolados, a pele tinha o tom pardacento comum às pessoas de brasília como um todo. É um tom de pele que talvez só exista aqui. Se existisse em qualquer outro lugar do país, aquela pele seria bronzeada e mais escura. Mas em Brasília o sol é uma raridade. O povo de forma geral não tem acesso à lugares para tomar sol. Piscinas são absurdamente caras, embora mesmo assim o bairro com mais piscinas por habitantes no Brasil esteja em Brasília e fique não muito longe de onde a mulher estava sentada naquele momento. Apesar de estar sentada no banquinho, a gorda não evitava o sol, ao contrário, se inclinava de forma a colocar o corpo no sol. Seus seios eram enormes e se postavam tranqüilos sobre as dobras gordas da barriga, que por sua vez estava apoiada nas pernas. A estrutura formada por aquelas partes moles era recoberta pelas finas camadas de tecido estranho e puído, criando uma sensação de deformidade. <br /><br />O rosto da moça contradizia de alguma forma essa sensação. E embora aquele rosto oval e emoldurado por um cabelo maltratado não fosse de forma alguma atraente, ele não deixava de emanar uma estranha serenidade. Naquele rosto se viam anos de apoesares variados. Apoesando-se daqueles sofrimentos todos, o rosto conseguia de alguma forma transmitir uma calma e uma serenidade que eu sentia faltar em mim mesmo naquela manhã fria de junho. Era um rosto gordo e tranqüilo de Buda. <br /><br />Uma boa forma de verificar o quanto uma pessoa vive bem é ver a capacidade que ela tem de existir apoesar os próprios problemas. Apoesar não é adoçar, não é fazer poesia sobre o sofrimento. Apoesar é lidar com a dor de forma sincera, sem fingir que ela não existe, sem tentar fugir dela. Apoesar não deveria nem ser escrito como verbo, mas apenas como conjunção adversativa. Como tudo o que é humano padece, só nos resta viver apoesar do padecimento. Viver é padecer e ainda sim viver apoesar de tudo. Essa palavra eu aprendi naquele dia. <br /><br />A outra moça buscava com o corpo a sombra da pequena castanheira que havia ao lado do banquinho. Com uma mão, segurava um celular com o qual conversava. Ao contrário da outra, era uma moça magra. Sua voz agoniada no celular quebrava a paz daquela manhã estranha. A moça conversava com alguém importante para ela. Falava como as pessoas falam de coisas importantes que acabarão por ter uma grande importância em suas vidas. A conversação nessas ocasiões se dá sempre como um enfrentamento entre frentes opostas, com retrocessos, concessões, rompantes de raiva e de angústias e por fim novos acordos. A moça vestia uma calça jeans com uma sandália, numa combinação igualmente fora dos parâmetros do que as pessoas consideram elegante. Tanto a calça jeans quanto a sandália eram velhas e estavam parcialmente sujas de poeira. <br /><br />A moça magra desligou o celular e parecia chorar. À essa altura eu tinha acabado de passar pelo grupo. Minha primeira impressão quando os avistei era de que se tratava de prostitutas. Provavelmente eu estava certo. Os três já viam minhas costas quando uma delas me chamou. Foi a gorda, já que a outra tinha entrado num choro convulso, e o rapaz parecia dormir. Eu parei de andar quando ouvi. A verdade é que o grupo tinha me cativado de alguma forma, e eu precisava saber mais sobre aquelas pessoas. Meu corpo me alertava sobre os aborrecimentos pelos quais eu fatalmente passaria se resolvesse virar e ir até eles. Minhas pernas tinham vontade de apenas seguir em frente, ignorando os chamados débeis do que deveriam ser duas prostitutas feias e infelizes, e um cafetão ou ladrão de galinha. <br /><br />Virei o corpo e caminhei na direção dos três.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-84931881294596098872009-06-10T01:15:00.001+03:002009-06-10T01:15:52.397+03:00hai-kai do BEmília<br /> <br />Linda, boneca, puta.<br />Fuma pedra <br />E numa piça labuta.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-30343901456579924452009-06-02T20:30:00.002+03:002009-06-02T20:37:10.512+03:00blog novo, vida novaFruto de uma relação extra-conjugal com o lado literário da força, este blog aqui finalmente encontra seu termo. Decerto que não será deletado nem nada disso; continuará aqui. Mas minhas energias agora se voltam para o ofício de informar, de suprir meus leitores com informação bobagenta. A casa nova fica nesse endereço: <br /><br /> http://blogdobatman.wordpress.com/<br /> <br /> Quanto à essas páginas, contnuarão aqui, vez por outra recebendo algum novo trabalho. Obrigado à todos e divirtam-se.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-57487034842073794722009-05-26T03:43:00.002+03:002009-05-26T04:00:51.537+03:00O que vai pelo mundo? - Festa da Adidas numa mansão nazistaSexta feira, enquanto eu saía naquele fatídico rolê brasiliense, rolava no Rio de Janeiro uma festa promocional da Adidas. O detalhe é que o "evento" aconteceu numa mansão na gávea decorada com motivos do Terceiro Reich. Quandros de oficiais nazistas, suásticas nos azulejos da piscina e cartazes de propaganda da marinha de guerra do Füher. <br /><br />O achado foi feito por um blogueiro de nome engraçado.<br /><br />http://oglobo.globo.com/blogs/cuenca/posts/2009/05/23/festa-da-adidas-em-mansao-nazista-189027.asp<br /><br />Conhecidentemente, a Adidas é uma empresa alemã, fundada por um camarada de nome Adolf. <br /><br />Longe de sugerir qualquer ligação entre as três listras e a suástica, a conclusão que fica é a de que burguesia de ontem é a burguesia de hoje, seja financiando regimes genocidas, seja promovendo festas de gosto duvidoso.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-81781383881293780032009-05-15T06:57:00.001+03:002009-05-15T07:00:12.883+03:00patifériasEramos três. Eu, o bróder e a guria. O bróder ia na frente, com o volante na mão, pilotando nossa espaçonave reluzente por entre as luzes da via-láctea - ou seria o Eixão? - naquela madrugada mágica. <br />O bróder nesse momento era o monarca absoluto. Tinha nossas vidas na mão, nas mãos trêmulas, tinha o controle do som - que nesse momento era pilotado talvez com mais maestria que o carro - e sobretudo tinha a primeira dama ao seu lado. O bróder tinha seu momento de glória esculpindo um caminho sob a luz bonita dos primeiros raios de luz de um domingo qualquer desses. <br /> E eu, à despeito de minha posição de reles ministro, tratei de me imiscuir na alcova real. E a cada quadra que passava zunindo por nós, me embriagava um pouco mais da presença da guria, quem diria, da santa e virgem e mil vezes imaculada guria do meu próprio bróder. Do meu melhor bróder, aliás, de um dos meus melhores bróderes. Aquela aurora assistia ao nascer gêmeo da minha confusão. <br />Me embriagava justo quando achava impossível mais alguma embriaguez, me embriagava daquela voz, sobretudo da voz, da voz e dos cabelos cuidadosamente desarrumados sobre a maquiagem desfeita. E, no entanto, como poderia? O que seria feito do meu amor-próprio se essa insanidade criasse raízes? Sim, porque nesses casos o impulso de preservação não é no sentido do outro, é no nosso próprio. <br /> Num átimo, éramos quatro. Sim, no banco de atrás, na altura da pélvis eu tinha companhia. O Amigo despertara de súbito, acordado pelos pecaminosos pensamentos da parte de cima.<br /><br />Amigo, eu lhe rogo, volte ao leito! <br />Depois de hoje, e pelo menos atá amanhã, <br />deverias estar satisfeito! <br /><br /> Minha pálida tentativa não foi sequer considerada, e por isso, a parte de cima teve que começar a imaginar conseqüências, calcular estratégias, enfim, fazer aquilo para o que foi feita. O quarto passageiro não dava sinais de retroceder, e dados os sinais que vinham do banco do carona eu mesmo não teria subsídio para criticá-lo. <br /> Faltavam nove quadras, apenas nove quadras, para o momento fatídico. Pensei que nem mesmo todas as trinta e duas tesourinhas seriam suficientes - àquela velocidade - para que se amainassem os sinais dos meus pecaminosos sentimentos. E elas foram passando, uma a uma. Cada uma com um golpe de vista do amanhecer tranqüilo naquelas boas quadras. A Asa ia despertando com seus blocos, suas lojas, suas barraquinhas de dog, suas jamaicas serenas e verdes. Faltando apenas duas, desisti e me entreguei ao delírio brilhante de loucura daqueles olhos, dancei na melodia suave e descompassada da voz. <br /> Ela desceu. O bróder a beijou graciosamente, gracioso que estava na luz dourada da manhã. Graciosamente ela desceu, e graciosamente ele me chamou à frente para o resto da jornada. Eu saí sabendo da singularidade nua daquele momento. Ela simplesmente me abraçou e no seu abraço eu senti o peso da minha inocência infantil e da inocência infantil de todos os homens. Foi um abraço duro. Ao meu olhar abobado e constrangido ela respondeu com um sorriso, que bailava entre os raios de sol e entre o desejo, o materno e o cínico.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-47847084060362600202009-05-15T00:43:00.002+03:002009-05-15T00:45:11.295+03:00epitáfionesses momentos do calvário eu sempre penso "porra, devia ter virado hippie".André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-72243107796536632252009-05-08T05:40:00.002+03:002009-05-08T05:41:02.185+03:00... e mesmo depois disso tudo, a única coisa que podemos afirmar com certeza é que a ricota é o pior queijo já criado pelo homem.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-76583481052415679642009-04-30T23:00:00.002+03:002009-04-30T23:03:36.894+03:00Cortando um côco na traseira de um caminhão parado numa rua de fortaleza. Uma rua pavimentada com pedras ancestrais e irregulares, que no começo da noite dispersam o calor acumulado durante o dia.<br /><br /><br />É por isso<br /><br />que a constituição é analítica,<br /><br />analítica, <br /><br />analítica.<br /><br />Ela vai e vem,<br /><br />Vai e vem,<br /><br />Vai e vem.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-90412972532018248252009-04-24T22:15:00.003+03:002009-04-24T22:19:00.266+03:00incursões (III)<a href="http://1.bp.blogspot.com/_9IVw2T68TfM/SfIQl8rx-XI/AAAAAAAAAHQ/RVtGkWWVZ0g/s1600-h/figura-5%5B1%5D.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 244px; height: 400px;" src="http://1.bp.blogspot.com/_9IVw2T68TfM/SfIQl8rx-XI/AAAAAAAAAHQ/RVtGkWWVZ0g/s400/figura-5%5B1%5D.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5328339553263679858" /></a><br />3. A violência verbal e discursiva constitui o fruto mais pródigo da disseminação do estilo de vida urbano e da criação de um contingente urbano de miseráveis. O dito "rap nacional" parte para a propagação dos falhos valores morais neo-pentecostais de seus artistas através de uma retórica suja e francamente agressiva, calculada para ofender aqueles que, paradoxalmente, são os inimigos e os modelos imaginários da cambada.<br /> Ora, já é tempo para a violência retórica ganhar o mundo! Chega dessas metáforas visuais de cunho sentimentalista e afeminado que infestam nossa poesia e a música! É hora de bater na mesa e formar um coro monumental para proclamar <em>nossas</em> verdades! Chega de ter vergonha de nossas próprias ambições, chega da maldita culpa! Por uma estética da simplicidade e da violência. Por uma estética da <em>sinceridade</em> acima de tudo.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-90457402930402504832009-04-22T04:26:00.001+03:002009-04-22T04:28:37.387+03:00incursões (II)<strong>2</strong>. A desgraça da raça humana, a verdadeira desgraça da juventude universitária de meus dias consiste em adotar justificações cada vez mais estéticas da vida. Quanto esforço, tempo e dinheiro não é gasto em regular milimetricamente um mundo de aparências socialmente elaboradas e cada vez mais meticulosas? Acho que, ao se definir no mundo, o sujeito atualmente o faz de forma puramente estética. Vou ser médico, porque acho bonitas as roupas brancas. Ao se projetar num futuro ideal, o doidão o faz praticamente como quem compõe uma cena. Lá estou eu: saindo de um apartamento bem decorado em tal bairro, pegando tal carro, com tal modelo de mulher ao meu lado. A cor da minha camisa é praticamente tão importante quanto o lugar onde eu trabalho. Digo, a justificativa estética tem sim seu valor. Por mais desagregadora que seja, a vida estética tem a propriedade de ser livre de vínculos profundos. Muda-se de vida como quem muda de roupa (literalmente) e isso chega a ser bom, se um se encontra totalmente privado de um sentido de construção amplo e duradouro.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-52540630967882543472009-04-20T04:37:00.001+03:002009-04-20T17:46:33.389+03:00incursões1. Dizem por aí que Freud descobriu a irracionalidade de homem comum. Não interessa se essa colocação é falsa ou não, não me importa se foi isso mesmo que ele quis dizer ou não. A irracionalidade da vida cotidiana é um ponto de partida interessante para as nossas reflexões essa noite. Afinal, sob o peso de todas as mazelas do mundo, das desgraças monumentais do finado século XX, e dos prenúncios sombrios de nossos tempos, quem conseguiria ver qualquer sentido em "bailar na superfície estética do mundo" numa vida consumista vazia de sentido e de afetos reais e significativos? Pergunte ao Dr. Freud se é racional encher o cu de cocaína e trabalhar por horas e horas em longos estudos que serão queimados mais tarde. É claro que não. Precisa a vida humana ser racional? A racionalidade da vida humana é praticamente uma impossibilidade. É claro, pode-se adotar um estilo de vida racional, regular os próprios atos afim de evitar o sofrimento ou obter algum tipo de prazer e satisfação. E é tudo. A vida pode ser racional em seus meios, mas jamais em suas finalidades.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-46341273021980609142009-04-18T05:34:00.002+03:002009-04-18T05:43:31.633+03:00here, take a look fuckers<object width="425" height="344"><param name="movie" value="http://www.youtube.com/v/Ulxe1ie-vEY&color1=0xb1b1b1&color2=0xcfcfcf&feature=player_embedded&fs=1"></param><param name="allowFullScreen" value="true"></param><embed src="http://www.youtube.com/v/Ulxe1ie-vEY&color1=0xb1b1b1&color2=0xcfcfcf&feature=player_embedded&fs=1" type="application/x-shockwave-flash" allowfullscreen="true" width="425" height="344"></embed></object><br /><br />É interessante usar uma metáfora gravitacional para falar dessa situação; justamente porque parece que os nossos conceitos de organização social foram apreendidos de forma um tanto quanto gravitacional também: nós aprendemos que o mundo tal qual está aí é a necessária evolução do decurso da história, que ele era, digamos, inevitável. Mas ele não é! porra, ele não é! <br />Ei garotos, corram! Mudem a porra do mundo antes que ele mude vocês, antes que vocês virem troço.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-16856546488964277712009-04-07T06:17:00.000+03:002009-04-07T06:19:21.153+03:00A formiga e a cigarraEra uma vez um bosque. Nesse bosque haviam muitos formigueiros (evidentemente repletos de formigas de todos os tipos e tamanhos) e também haviam muitas cigarras.<br />As formigas do bosque eram especialmente atentas às aparências: gostavam de ternos bem cortados, sapatos sempre bem engraxados, cabelos penteados. Evitavam decotes, palavrões, saltos demasiado altos. Tinham horror aos escândalos e cenas públicas. Procuravam instruir os filhos para que se tornassem bons cidadãos, seguidores dos costumes, embora estes costumassem adotar, especialmente durante a juventude, os usos malcriados e rebeldes repugnados pelos pais. Uma vez passada a fase problématica, entretanto, a vida seguia seu curso normal . A maioria delas freqüentava aos cultos e missas no domingo. Todo o resto do bosque as tinha em conta de gente honesta, ordeira, e, via de regra, abonada.<br /> No campo aparentemente oposto estavam as cigarras. Sempre tendo problemas com a polícia, sempre envolvidas com drogas, sempre atoladas em vícios e badernas diversas, mesmo quando famosas. Sim, pois as cigarras constituiam a classe artística por exelência do bosque. Houve época em que desde o cantor de butequim até os expoentes da indústria fonográfica eram cigarras. As formigas consideravam as cigarras repreeensíveis por muitas coisas, desde seus comportamentos sexuais inadequados até seu uso de protestar contra as medidas governo do bosque; mas, acima de tudo, as cigarras eram um mal exemplo por não trabalharem. Desde quando ficar aí pelas esquinas e pelos butecos é trabalho? Tocar e cantar todos nós podemos, e se ninguem fizer, não há de fazer falta também. E a vida que essa gente leva, então...?! Deus que me livre!<br /> Para o resto do bosque, as coisas pareciam exatamente desse jeito, e no entanto, as coisas nem sempre ou raramente se passam da maneira como o vulgo as percebe. Hei de lhe mostrar agora dois personagens do Bosque, para explicar o que digo.<br /> João Cigarrito era músico. Instrumentista por profisão e por paixão. Desde pequeno respirou música, por que em sua casa não faltava alguém para tomar o violão e tocar, e nem alguém que cantasse. Começou desde pequeno a lidar com os instrumentos, e, desde muito moço, animava os lugares que frequentava com canto e dedilhado de viola. Assim, os pais não ficaram exatamente surpresos quando ele disse que ia ser músico, embora a mãe quisesse mesmo que ele fizesse Direito, pra trabalhar com o Seu Formigôncio.<br /> João Cigarrito andava deveras ocupado ultimamente. Para quem não sabe, se sustentar como músico não é nada fácil, especialmente num bosque de terceiro mundo. A necessidade de ganhar o pão de cada dia obrigava o João a se desdobrar em vários empregos, dando aulas particulares, tocando em barzinhos noite à fora, e até gravando jingles publicitários. João acordava cedo, pegava dois ônibus da árvore onde morava até o centro. Ia levando a vida, que, na opinião dele, era mais fácil com uma boa canção. “É como disse outro: quem tem a viola, pra se acompanhar...” A vida era simples, quiçá sofrida, mas feliz apesar de tudo.<br /> Arthur Formigôncio era muitas coisas: Filho do Seu Formigôncio, bacharel em direito, administrador das empresas do pai. Arthur era uma formiga realmente respeitável. Acordava todo dia às nove da manhã, vestia um belo terno e ia para o trabalho num carro enorme. O trabalho de Arthur era administrar o dinheiro do pai, e, dizem os boatos, gastá-lo. Arthur havia se formado em Direito, pois pretendia seguir os passos do pai. Não passou no exame de ordem, dizem os boatos que por não ter se esforçado durante o curso. Também correm boatos de que o jovem teve problemas com drogas na adolescência, motivo pelo qual foi mandado para uma longa temporada num formigueiro distante, no norte. Seu Formigôncio certa feita chegou a processar um psicólogo que sugeriu que os problemas emocionais de Arthur tivessem alguma relação com o histórico de alcoolismo do pai e com os adultérios da mãe. Mesmo quando adulto, Artur parece não ter se recuperado de uma gripe pega na época da viagem, motivo pelo qual estava sempre com o nariz escorrendo. Um dia, aparentemente entediado com suas longas férias, Arthur deixou seu apartamento para não mais voltar. Dizem os boatos que foi encontrado morto num beco atrás de uma boate bem cara. Estava numa poça de vômito e sangue, com os olhos vidrados.<br /> <br /> Moral da história: tolo é aquele que julga as pessoas pelas aparências e pela profissão.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-36856793156605613422009-03-25T18:19:00.003+02:002009-03-25T18:23:43.271+02:00andores cibernéticosTodo o esforço dos contadores de histórias, dos poetas e dos ilusionistas de todos os povos se condensa num objetivo simples: manter o espectador sem entender que poesia, arte, cultura, são feitos com reuniões condensadas de velhas imagens que os povos criam e carregam ao longo da história. São os velhos ídolos, sempre rearranjados, que mantem a força ao longo dos séculos, e que justamente por não terem autor nem início, provavelmente viverão enquanto houver ser humano. São os mesmos velhos santos que a multidão carrega, em andores cibernéticos.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-41293420805653934052009-03-15T05:33:00.001+02:002009-03-15T05:35:35.854+02:00disse frantz fanon"Durante a colonização, o colonizado não pára de se libertar das nove da noite às seis da manhã."André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-64709075629664995152009-03-12T23:02:00.001+02:002009-03-12T23:04:11.607+02:00o balão brancoQuando eu era pequeno, seguia o costume das crianças de chorar por quase qualquer coisa. Meu pai não me consolava, dizia apenas que eu teria ocasiões bem piores para chorar ao longo da vida. Essa reminiscencia me veio quando assisti um filme sobre uma menina iraniana e suas peripécias e frustrações para conseguir um maldito peixinho branco (chama-se O balão branco). O filme, apesar de não ter explosões nem efeitos especiais teve a capacidade de prender e angustiar a mim e aos outros durante umas boas horas.<br /> Minha explicação para isso é de que, apesar de todas as certezas adultas do avanço econômico, do progresso científico, da classe média, da salvação das almas, todos nós temos a leve sensação de estarmos nos debatendo atrás de alguns peixes brancos. E com o detalhe perverso de não sabermos se eles existem ou não na verdade, ou se eles serão suficientes para nos dar felicidade perpétua.<br /> Me perdoem o miserável estilo Lya Luft, não pretendo me tornar um escritor de metafísica para donas de casa, mas os tempos são árduos e áridos.<br /> E os instantes verdadeiramente excruciantes da vida são aqueles nos quais percebemos o quanto a própria felicidade é miserável e irritante, via de regra fruto de um auto-engano deliberado e extremamente sofisticado.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-75301035890153324112009-03-11T04:50:00.002+02:002009-03-11T04:53:52.960+02:00roda vivaPá - <span style="font-size:78%;">pa . pa . rá</span><br /><br />(...)<br /><br />roda anão<br />roda gigante<br />roda dotô<br />roda pião<br /><br />geral rodô derrepente<br />quando da grande explosão.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-47949857384394386032009-03-08T19:35:00.003+02:002009-03-08T19:45:05.240+02:00hapiness is a warm gunUm dia quem sabe todas as pessoas do mundo acordem se sentindo plenamente satisfeitas. Logo o tédio tomaria conta do planeta, e as pessoas teriam fatalmente que arrumar algo pra fazer. Talvez todos os povos da terra concordassem que estava na hora de discutir a relação. Durante a conversa, massacres étnicos e sacanagens temporais viriam à tona. Um povo acusaria o outro, o outro replicaria, começaria o quebra pau. E tudo voltaria a ser como antes.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-48385759033283139822009-03-05T19:03:00.000+02:002009-03-05T19:04:04.299+02:00O negrinho<span style="font-size:180%;"><strong>3</strong> </span><br /><br /> O sol da manhã seguinte descobriu o negrinho deitado num canto do barracão. o sol através do zinco projetava pintas de luz em sua pele escura. Do lado de fora, Amélia lavava roupa; pra fora é claro, porque as dela mesmo já estavam todas limpas. tinha a sorte de morar bem ao lado do lugar onde as mulheres lavavam roupa, numa espécie de fonte bizarra composta de cacos de azulejos variados e abastecida por um caminhão pipa. A massa de mulheres reunidas em volta d'água emitia um certo zumbido, e um cheiro de flor e de sabão. À quem ouvisse, poderia lembrar o som de um mercado no Marrocos, ou na Espanha, sob o sol, com os panos coloridos se molhando e se secando regularmente.<br /> Ao acordar o negrinho foi até Amélia. Não esperou ela voltar para casa, e nem o sol deixaria. Do lado de fora do barracão, o céu de setembro tinha um azul desbotado, "cor de enfado", como escreveu o primo. As nuvens ocupavam o céu de forma organizada, em pequenas porções, regularmente distribuídas, criando um efeito geométrico deveras monótono. Com os pés nas ruas de areia, o negrinho caminhou até amélia. Chegou tocando uma flauta de bambu, enrolado em panos de cores vivas e padrões geométricos, montado num leão. Chegou vestindo trapos, sem flauta nem coroa de rei africano, com os pés no chão. Avisou-lhe de que queria ficar por ali, por que não tinha casa nem mãe. Chamou-a à noite para um banquete em seu castelo, onde criadas mouras serviriam melancia, costelas de jacaré, feijões doces, farofa e Tâmaras.<br /> Disse à ela que seus pais haviam morrido. Seu pai era bandido, mas sua mãe era católica. Uma boa católica. Seu pai era Aníbal, sua mãe era Atena. O barraco onde eles viviam havia sido tomado, e ele não tinha ninguém no mundo, só tinha ela. O templo de sua mãe continuava erguido sobre o monte, e à noite as pitonisas apareciam lá para proferir os oráculos. Seu pai estava em campanha, decerto invadindo Roma, mas mandaria setenta vezes setenta lanças para protegerem os dois, mandaria elefantes com batedores que levariam o cesto de roupa até em casa. O menino era pobre, mas era trabalhador. Levaria as roupas até em casa, ajudaria no que desse, guardaria à noite melhor que um cão de guarda. Só pedia em troca um teto e algum afeto.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-13597050115184959162009-02-25T21:40:00.002+02:002009-02-25T21:45:36.180+02:00O primo<span style="font-family:times new roman;font-size:180%;">2 </span><br /><br />A maldade se processa na mente de um modo <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_0">sutil</span>. As almas inocentes procuram afastar com tal pertinácia a <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_1">ideia</span> dos crimes horrendos que elas secretamente concebem que, às vezes, seus donos fazem as coisas acreditando-se vítimas acaso ou das circunstâncias. Era desse tipo a elaboração mental que fez o primo de Amélia cogitar <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_2">trazê</span>-la para o monte de poeira vermelha e caótica aonde acabou por brotar a capital do País. As figuras foram se juntando e formando um quadro que aquela consciência, ao ver, preferiu recuar e ignorar, tomada de terror que estava. A <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_3">ideia</span> era trazer a bela prima direito do sertão ignoto para o barraco de <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_4">teto</span> de zinco, de onde ela seria mandada para casar-se em troca do perdão das dívidas e da <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_5">consequente</span> <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_6">tranquilidade</span>. É claro que o bom homem não podia dormir em paz maquinando tal coisa, e é por isso que a <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_7">ideia</span> nem chegou à ser concebida direito. Foi logo abandonada como delírio maldoso.<br />Mas quem irá dizer que não havia um pouco dessa <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_8">ideia</span> quando ele fez vir a prima para o barracão, pouco mais de seis meses depois? Ela estava lá, e o curso natural dos acontecimentos acabaria levando à concretização do plano que sequer fora concebido, não fosse o acontecido naquele domingo. Agora, morto, o primo dormia o sono dos justos, sem se preocupar de ter feito tal coisa, e sem se preocupar mais com dívida alguma. A dívida foi paga com uma faca na barriga, com <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_9">cacetete</span> da <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_10">GEB</span> na nuca e assim por diante. Certamente não foi inútil trazer a prima; no fim das contas ela haveria de lhe providenciar uma cova rasa, que já é melhor que a vala comum.<br />Foi um homem bom, o primo. Só não fora bom o bastante. Outros foram mais atrozes, mais selvagens que ele, e como muitos outros com bolas pequenas demais ou grandes demais, acabou morrendo jovem.<br />Levou uma vida curta porém feliz, pobre porém livre. Como era esperto, acabou ganhando dinheiro. Teria ganho mais, se tivesse sido mais esperto e se mantido vivo. Vivia de fazer pequenas viagens numa velha <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_11">Kombi</span>. Trazia coisas de Minas e de <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_12">Goiânia</span> que vendia aos <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_13">candangos</span>. Nos últimos tempos tinha começado à trazer coisas que davam um barato diferente. Trazia um pouquinho pra ele e um pouquinho para vender pra uns amigos. Tinha até doutor que comprava, às vezes. Passava os dias entre procurar comida, ler <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_14">Rimbaud</span>, ficar <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_15">doidão</span> e jogar <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_16">sinuca</span>. As viagens provinham o que ele precisava pra viver, que não era muito.<br />Gostava de escrever, o primo. Escreveu um punhado de versos, todos num caderno antigo e soltando as folhas. Ultimamente tinha largado de escrever, porque sempre se sentia um pouco mal quando olhava os versos no caderno. Os versos pareciam suficientes talvez para compor a figura de um poeta meio vagabundo num texto de outra pessoa, mas por si mesmos eles não criavam um universo, não eram completos em si mesmos. Ele pensava: a escrita tem que criar um mundo. A escrita é fraca e lenta, como uma caminhada. Ela não é impressionante como uma música ou um filme, e a única vantagem dela é, justamente como numa caminhada, poder visitar os cantinhos e becos que não são acessíveis aos outros meios. Assim se sentia o primo nas noites longas à beira do lago.<br />Mas ultimamente as coisas tinham ficado feias. É que ficar <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_17">doidão</span> parecia ser muito melhor que as outras coisas. Passear com o cachorro e fumar um baseado à noite era de fato uma <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_18">ideia</span> muito atraente, bem melhor que uma esposa sempre reclamando e crianças com a fralda à trocar.<br />As coisas aconteceram depressa, logo que ele saiu da cidade livre e foi para o que depois seria chamado de vila planalto. Entrou em desacordo com uns caras da vizinhança, que logo lhe tomaram a <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_19">Kombi</span>, na base da ameaça; teria acabado como capanga e empregado daquela gente, se não tivesse acabado morto. O problema todo é que os negócios tinham ficado muito famosos na cidade livre. Quando começaram a aparecer filhos de delegados para comprar, ele soube que era hora de cair fora dali.<br />Por fim, morreu cedo, antes dos trinta. E tudo o que deixou foi um pequeno baú com textos e um livro incompleto sobre a vida no sertão. Dentro do <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_20">bauzinho</span> havia ainda algum dinheiro e um saquinho de <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_21">marafa</span>. Deixou também a prima dentro de um barracão de zinco, com um menino negrinho todo estatelado, cheio de marcas de pancada.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-37238202423234151082009-02-19T05:59:00.003+02:002009-02-19T06:11:22.927+02:00Amélia1<br /><br />Era quase noite quando Amélia saiu da mercearia. A música que cantava sobre bancas de revistas, coca-cola e preguiça ia se perdendo entre os outros sons do ambiente quando foi definitivamente quebrada pelo som de tiros. Nada haveria nisso de anormal, mas os tiros vieram de perto, e foram terminar enfiados na parede alaranjada de poeira bem atrás da cabeça dela, parede essa que deveria ser uma das poucas de alvenaria daquelas redondezas. Eles estancaram. Amélia e seu primo. Amélia olhou os buracos na parede e sentiu-os como se fossem na própria pele. Às vezes o desespero tem esse efeito de aguçar as sensações da gente. Ainda que os tiros não fossem para ela, e ela sabia que não eram, ela sabia que de onde vieram aqueles poderiam vir ainda alguns outros, e que o dono do dedo que apertou o gatilho poderia rapidamente mudar de <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_0">ideia</span>. A violência é a melhor forma de convencimento que existe.<br />Naquela hora, tudo que <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_1">Amélia</span> queria era os tiros parassem. Não lhe importava mais a honra, nem o corpo, nem as chaves do barraco de madeira coberto com zinco onde ela morava, ali perto. Os donos dos tiros apareceram logo. Um homem baixo e troncudo, sem camisa e usando uma <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_2">calça</span> <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_3">jeans</span> apertada com chinelo de borracha. Seu rosto retorcido de raiva e de álcool lembrava as árvores baixas que cercavam a terra vermelha do acampamento. Ao lado dele, mais três homens completavam o quadro que surgiu por detrás da nuvem de poeira vermelha.<br />Os homens murmuravam algo entre si; logo o primo largou <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_4">Amélia</span> encostada na parede e foi ter com eles. O homem baixo cuspiu diante dos pés do primo de Amélia. Falaram qualquer coisa entre si, e ele entregou a arma à um dos que andavam com ele. Pegou uma faca comprida e parcialmente enferrujada, com um cabo tosco de madeira, que parecia ter sido feito em casa. O primo de <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_5">Amélia</span> sacou outra faca semelhante, que estava em sua cintura. Enquanto a crescente multidão se reunia em torno deles, um dos homens sem camisa agarrou os braços de Amélia por trás, obrigando-a a assistir o martírio do único homem do mesmo sangue que ela. O rádio não emitia mais os acordes preguiçosos de Caetano, mas a voz áspera de algum cantor esquecido.<br />Ao fim do evento, o vestido branco se <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_6">Amélia</span> exibiria uma espécie de mural com as cores daquele domingo: por baixo o alaranjado da poeira cheia de ferro, depois as manchas de bebida obtidas na mercearia, depois o preto das mãos sujas de graxa do homem, que, a essa altura, além segurá-la apalpava seus seios e todo o seu corpo.<br />A luta prosseguia. Ora um avançava, ora outro. Ambos estavam cheios de cortes e com uma camada de sangue já seco sobre a pele quando apareceram os homens da <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_7">GEB</span>. Estes desceram de um <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_8">camburão</span>, alguns armados com <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_9">porretes</span>, outros com <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_10">fuzis</span>. Enquanto estes atiravam, aqueles, mais <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_11">ativos</span>, distribuíam fartas pancadas na multidão que rapidamente se dispersava. Amélia viu um menino de quinze anos correndo no meio da confusão. Ele inclinava o corpo e tentava proteger a cabeça enquanto corria, mas a fuga foi impedida por uma cacetada certeira do guarda. Voaram sangue, voaram dentes do menino. Antes que seu corpo desabasse no chão, a sola de um <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_12">coturno</span> imprimiu uma marca dolorosa em suas costas. O povo todo <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_13">escafedeu</span>-se. No chão ficaram o primo da moça, esfaqueado e <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_14">porreteado</span>, e o outro. Amélia, que tinha saído relativamente ilesa, deitou-se no chão ao lado do primo; este jazia quente e inerte no chão. A poeira que baixava lentamente se acumulava sobre o corpo do rapaz, formando uma espécie de casca ao se misturar com o sangue. Amélia deixou ali suas lágrimas, que ela sabia que seriam o único tipo de serviço funerário que rapaz receberia. Arrastou o corpo até a porta do barracão, e, sentada na soleira da porta viu chegar o menino. Ela sequer notara que estava sendo seguida. Junto dela e do corpo, ele mal conseguia falar. Chorava e se enrolava com um feto no útero, apenas.<br />As dez da noite, o estranho mural estava completo: Sobre o pano a poeira, sobre a poeira o licor, sobre o licor a graxa, e sobre a graxa o sangue.<br />Uma vela estava acesa sobre o menino, que limpava os ferimentos numa bacia de alumínio cheia d'água avermelhada de sangue e poeira. Outra vela estava <span class="blsp-spelling-corrected" id="SPELLING_ERROR_15">acesa</span> sobre <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_16">Amélia</span>, que, apesar da desgraça toda, lavava o vestido, que além daquele ela só tinha mais outro. Lavava o vestido numa tina semelhante à do menino, enquanto chorava.<br />Enquanto chorava, matutava na morte do primo, e no que seria dela dali pra frente. O primo morreu por conta de dívida, não há dúvida. Suspeitou por um momento que ela mesma fizesse parte do arranjo. Mulher por ali era coisa rara. Mas ele não teve coragem de a entregar. Se Amélia fosse parar na mão daquela gente, terminaria na frente de uma fila de homens sedentos, em alguma casa famosa.<br />Bom primo! Os pensamentos iam ficando turvos como a água da tina, até cessarem por força da <span class="blsp-spelling-error" id="SPELLING_ERROR_17">exaustação</span>.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5501612572214894776.post-60105124316189247402009-02-13T21:14:00.002+02:002009-02-13T21:16:46.586+02:00Eu sentado aqui sob esse sol,<br />Com meia garrafa de café no espírito<br /><br />Escuto os lamentos desses mulatos tristes<br />E rumino alguma estória triste<br /><br />Que em breve vos entregarei,<br />Meus poucos, ávidos e infalíveis leitores.André Shaldershttp://www.blogger.com/profile/11967004798867304908noreply@blogger.com1