quinta-feira, 5 de março de 2009

O negrinho

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O sol da manhã seguinte descobriu o negrinho deitado num canto do barracão. o sol através do zinco projetava pintas de luz em sua pele escura. Do lado de fora, Amélia lavava roupa; pra fora é claro, porque as dela mesmo já estavam todas limpas. tinha a sorte de morar bem ao lado do lugar onde as mulheres lavavam roupa, numa espécie de fonte bizarra composta de cacos de azulejos variados e abastecida por um caminhão pipa. A massa de mulheres reunidas em volta d'água emitia um certo zumbido, e um cheiro de flor e de sabão. À quem ouvisse, poderia lembrar o som de um mercado no Marrocos, ou na Espanha, sob o sol, com os panos coloridos se molhando e se secando regularmente.
Ao acordar o negrinho foi até Amélia. Não esperou ela voltar para casa, e nem o sol deixaria. Do lado de fora do barracão, o céu de setembro tinha um azul desbotado, "cor de enfado", como escreveu o primo. As nuvens ocupavam o céu de forma organizada, em pequenas porções, regularmente distribuídas, criando um efeito geométrico deveras monótono. Com os pés nas ruas de areia, o negrinho caminhou até amélia. Chegou tocando uma flauta de bambu, enrolado em panos de cores vivas e padrões geométricos, montado num leão. Chegou vestindo trapos, sem flauta nem coroa de rei africano, com os pés no chão. Avisou-lhe de que queria ficar por ali, por que não tinha casa nem mãe. Chamou-a à noite para um banquete em seu castelo, onde criadas mouras serviriam melancia, costelas de jacaré, feijões doces, farofa e Tâmaras.
Disse à ela que seus pais haviam morrido. Seu pai era bandido, mas sua mãe era católica. Uma boa católica. Seu pai era Aníbal, sua mãe era Atena. O barraco onde eles viviam havia sido tomado, e ele não tinha ninguém no mundo, só tinha ela. O templo de sua mãe continuava erguido sobre o monte, e à noite as pitonisas apareciam lá para proferir os oráculos. Seu pai estava em campanha, decerto invadindo Roma, mas mandaria setenta vezes setenta lanças para protegerem os dois, mandaria elefantes com batedores que levariam o cesto de roupa até em casa. O menino era pobre, mas era trabalhador. Levaria as roupas até em casa, ajudaria no que desse, guardaria à noite melhor que um cão de guarda. Só pedia em troca um teto e algum afeto.

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