quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O primo

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A maldade se processa na mente de um modo sutil. As almas inocentes procuram afastar com tal pertinácia a ideia dos crimes horrendos que elas secretamente concebem que, às vezes, seus donos fazem as coisas acreditando-se vítimas acaso ou das circunstâncias. Era desse tipo a elaboração mental que fez o primo de Amélia cogitar trazê-la para o monte de poeira vermelha e caótica aonde acabou por brotar a capital do País. As figuras foram se juntando e formando um quadro que aquela consciência, ao ver, preferiu recuar e ignorar, tomada de terror que estava. A ideia era trazer a bela prima direito do sertão ignoto para o barraco de teto de zinco, de onde ela seria mandada para casar-se em troca do perdão das dívidas e da consequente tranquilidade. É claro que o bom homem não podia dormir em paz maquinando tal coisa, e é por isso que a ideia nem chegou à ser concebida direito. Foi logo abandonada como delírio maldoso.
Mas quem irá dizer que não havia um pouco dessa ideia quando ele fez vir a prima para o barracão, pouco mais de seis meses depois? Ela estava lá, e o curso natural dos acontecimentos acabaria levando à concretização do plano que sequer fora concebido, não fosse o acontecido naquele domingo. Agora, morto, o primo dormia o sono dos justos, sem se preocupar de ter feito tal coisa, e sem se preocupar mais com dívida alguma. A dívida foi paga com uma faca na barriga, com cacetete da GEB na nuca e assim por diante. Certamente não foi inútil trazer a prima; no fim das contas ela haveria de lhe providenciar uma cova rasa, que já é melhor que a vala comum.
Foi um homem bom, o primo. Só não fora bom o bastante. Outros foram mais atrozes, mais selvagens que ele, e como muitos outros com bolas pequenas demais ou grandes demais, acabou morrendo jovem.
Levou uma vida curta porém feliz, pobre porém livre. Como era esperto, acabou ganhando dinheiro. Teria ganho mais, se tivesse sido mais esperto e se mantido vivo. Vivia de fazer pequenas viagens numa velha Kombi. Trazia coisas de Minas e de Goiânia que vendia aos candangos. Nos últimos tempos tinha começado à trazer coisas que davam um barato diferente. Trazia um pouquinho pra ele e um pouquinho para vender pra uns amigos. Tinha até doutor que comprava, às vezes. Passava os dias entre procurar comida, ler Rimbaud, ficar doidão e jogar sinuca. As viagens provinham o que ele precisava pra viver, que não era muito.
Gostava de escrever, o primo. Escreveu um punhado de versos, todos num caderno antigo e soltando as folhas. Ultimamente tinha largado de escrever, porque sempre se sentia um pouco mal quando olhava os versos no caderno. Os versos pareciam suficientes talvez para compor a figura de um poeta meio vagabundo num texto de outra pessoa, mas por si mesmos eles não criavam um universo, não eram completos em si mesmos. Ele pensava: a escrita tem que criar um mundo. A escrita é fraca e lenta, como uma caminhada. Ela não é impressionante como uma música ou um filme, e a única vantagem dela é, justamente como numa caminhada, poder visitar os cantinhos e becos que não são acessíveis aos outros meios. Assim se sentia o primo nas noites longas à beira do lago.
Mas ultimamente as coisas tinham ficado feias. É que ficar doidão parecia ser muito melhor que as outras coisas. Passear com o cachorro e fumar um baseado à noite era de fato uma ideia muito atraente, bem melhor que uma esposa sempre reclamando e crianças com a fralda à trocar.
As coisas aconteceram depressa, logo que ele saiu da cidade livre e foi para o que depois seria chamado de vila planalto. Entrou em desacordo com uns caras da vizinhança, que logo lhe tomaram a Kombi, na base da ameaça; teria acabado como capanga e empregado daquela gente, se não tivesse acabado morto. O problema todo é que os negócios tinham ficado muito famosos na cidade livre. Quando começaram a aparecer filhos de delegados para comprar, ele soube que era hora de cair fora dali.
Por fim, morreu cedo, antes dos trinta. E tudo o que deixou foi um pequeno baú com textos e um livro incompleto sobre a vida no sertão. Dentro do bauzinho havia ainda algum dinheiro e um saquinho de marafa. Deixou também a prima dentro de um barracão de zinco, com um menino negrinho todo estatelado, cheio de marcas de pancada.

Um comentário:

Vanessa Gomes disse...

Passeando pela net, caí aqui!
Desculpa a invasão. Li algumas coisas aqui. Gostei!

Passa no meu!

=)