quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Amélia

1

Era quase noite quando Amélia saiu da mercearia. A música que cantava sobre bancas de revistas, coca-cola e preguiça ia se perdendo entre os outros sons do ambiente quando foi definitivamente quebrada pelo som de tiros. Nada haveria nisso de anormal, mas os tiros vieram de perto, e foram terminar enfiados na parede alaranjada de poeira bem atrás da cabeça dela, parede essa que deveria ser uma das poucas de alvenaria daquelas redondezas. Eles estancaram. Amélia e seu primo. Amélia olhou os buracos na parede e sentiu-os como se fossem na própria pele. Às vezes o desespero tem esse efeito de aguçar as sensações da gente. Ainda que os tiros não fossem para ela, e ela sabia que não eram, ela sabia que de onde vieram aqueles poderiam vir ainda alguns outros, e que o dono do dedo que apertou o gatilho poderia rapidamente mudar de ideia. A violência é a melhor forma de convencimento que existe.
Naquela hora, tudo que Amélia queria era os tiros parassem. Não lhe importava mais a honra, nem o corpo, nem as chaves do barraco de madeira coberto com zinco onde ela morava, ali perto. Os donos dos tiros apareceram logo. Um homem baixo e troncudo, sem camisa e usando uma calça jeans apertada com chinelo de borracha. Seu rosto retorcido de raiva e de álcool lembrava as árvores baixas que cercavam a terra vermelha do acampamento. Ao lado dele, mais três homens completavam o quadro que surgiu por detrás da nuvem de poeira vermelha.
Os homens murmuravam algo entre si; logo o primo largou Amélia encostada na parede e foi ter com eles. O homem baixo cuspiu diante dos pés do primo de Amélia. Falaram qualquer coisa entre si, e ele entregou a arma à um dos que andavam com ele. Pegou uma faca comprida e parcialmente enferrujada, com um cabo tosco de madeira, que parecia ter sido feito em casa. O primo de Amélia sacou outra faca semelhante, que estava em sua cintura. Enquanto a crescente multidão se reunia em torno deles, um dos homens sem camisa agarrou os braços de Amélia por trás, obrigando-a a assistir o martírio do único homem do mesmo sangue que ela. O rádio não emitia mais os acordes preguiçosos de Caetano, mas a voz áspera de algum cantor esquecido.
Ao fim do evento, o vestido branco se Amélia exibiria uma espécie de mural com as cores daquele domingo: por baixo o alaranjado da poeira cheia de ferro, depois as manchas de bebida obtidas na mercearia, depois o preto das mãos sujas de graxa do homem, que, a essa altura, além segurá-la apalpava seus seios e todo o seu corpo.
A luta prosseguia. Ora um avançava, ora outro. Ambos estavam cheios de cortes e com uma camada de sangue já seco sobre a pele quando apareceram os homens da GEB. Estes desceram de um camburão, alguns armados com porretes, outros com fuzis. Enquanto estes atiravam, aqueles, mais ativos, distribuíam fartas pancadas na multidão que rapidamente se dispersava. Amélia viu um menino de quinze anos correndo no meio da confusão. Ele inclinava o corpo e tentava proteger a cabeça enquanto corria, mas a fuga foi impedida por uma cacetada certeira do guarda. Voaram sangue, voaram dentes do menino. Antes que seu corpo desabasse no chão, a sola de um coturno imprimiu uma marca dolorosa em suas costas. O povo todo escafedeu-se. No chão ficaram o primo da moça, esfaqueado e porreteado, e o outro. Amélia, que tinha saído relativamente ilesa, deitou-se no chão ao lado do primo; este jazia quente e inerte no chão. A poeira que baixava lentamente se acumulava sobre o corpo do rapaz, formando uma espécie de casca ao se misturar com o sangue. Amélia deixou ali suas lágrimas, que ela sabia que seriam o único tipo de serviço funerário que rapaz receberia. Arrastou o corpo até a porta do barracão, e, sentada na soleira da porta viu chegar o menino. Ela sequer notara que estava sendo seguida. Junto dela e do corpo, ele mal conseguia falar. Chorava e se enrolava com um feto no útero, apenas.
As dez da noite, o estranho mural estava completo: Sobre o pano a poeira, sobre a poeira o licor, sobre o licor a graxa, e sobre a graxa o sangue.
Uma vela estava acesa sobre o menino, que limpava os ferimentos numa bacia de alumínio cheia d'água avermelhada de sangue e poeira. Outra vela estava acesa sobre Amélia, que, apesar da desgraça toda, lavava o vestido, que além daquele ela só tinha mais outro. Lavava o vestido numa tina semelhante à do menino, enquanto chorava.
Enquanto chorava, matutava na morte do primo, e no que seria dela dali pra frente. O primo morreu por conta de dívida, não há dúvida. Suspeitou por um momento que ela mesma fizesse parte do arranjo. Mulher por ali era coisa rara. Mas ele não teve coragem de a entregar. Se Amélia fosse parar na mão daquela gente, terminaria na frente de uma fila de homens sedentos, em alguma casa famosa.
Bom primo! Os pensamentos iam ficando turvos como a água da tina, até cessarem por força da exaustação.

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