segunda-feira, 22 de junho de 2009

prostitutas ( I )

Eu vinha atravessando a quadra. O inverno em Brasília oferece certos desagrados que são únicos no mundo. Nas sombras dos blocos, nos estacionamentos feios e sem árvores das quatrocentos, o frio era incômodo, e era possível ouvir as pessoas que acordavam. No sol, era possível sentir a pele ardendo depois de algum tempo. E em ambos os lugares era inevitável sentir o vento seco e frio que fazia minha garganta sangrar. O açoite do vento trazia consigo um gosto incômodo de noite.

Foi numa manhã fria de junho. O céu estava totalmente azul, o sol brilhava pálido esquentando o asfalto, e entretanto fazia frio. As mães desciam dos blocos trazendo as crianças para tomar sol no parquinho. Mas naquele parquinho não havia nenhuma criança. Nenhuma mãe ou avó responsável levaria uma criança para brincar perto daqueles três personagens.

Os três estavam em um banquinho na quatrocentos e onze que durante a semana era usado por um grupo de mecânicos de rua. Hoje os mecânicos não estavam lá, deviam estar em casa com a família, engordando. Tudo que a cidade tinha para substituir os mecânicos eram esses três, duas mulheres e um rapaz.

O rapaz estava deitado no chão sob o sol, de barriga para cima, com as pernas abertas e os joelhos dobrados. Na barriga, em cima da camisa do São Paulo, ele tinha um celular que tocava uma música num volume alto. A música era um pop indistinto, cantada por uma voz feminina, em inglês. Era aquele tipo de voz que se manteve constante na música pop anglo-saxã dos últimos 30 anos, com pequenas variações mas se mantendo sempre a mesma. A música como um todo, aliás, seguia o mesmo padrão. Em última instância, o personagem como um todo seguia aquele mesmo padrão. Indistinto, algo pasteurizado. Um rosto desconhecido e no entanto igual à milhares de outros que eu já vi. Aquilo me incomodava.

As moças estavam sentadas no banquinho da quadra. Eram bem diferentes entre si, embora tivessem uma familiaridade entre si e com o rapaz também. Uma delas era bem gorda. Vestia uma minissaia púrpura, de um tecido enrugado e estranho, e um top verde. Tinha cabelos longos, pretos e encaracolados, a pele tinha o tom pardacento comum às pessoas de brasília como um todo. É um tom de pele que talvez só exista aqui. Se existisse em qualquer outro lugar do país, aquela pele seria bronzeada e mais escura. Mas em Brasília o sol é uma raridade. O povo de forma geral não tem acesso à lugares para tomar sol. Piscinas são absurdamente caras, embora mesmo assim o bairro com mais piscinas por habitantes no Brasil esteja em Brasília e fique não muito longe de onde a mulher estava sentada naquele momento. Apesar de estar sentada no banquinho, a gorda não evitava o sol, ao contrário, se inclinava de forma a colocar o corpo no sol. Seus seios eram enormes e se postavam tranqüilos sobre as dobras gordas da barriga, que por sua vez estava apoiada nas pernas. A estrutura formada por aquelas partes moles era recoberta pelas finas camadas de tecido estranho e puído, criando uma sensação de deformidade.

O rosto da moça contradizia de alguma forma essa sensação. E embora aquele rosto oval e emoldurado por um cabelo maltratado não fosse de forma alguma atraente, ele não deixava de emanar uma estranha serenidade. Naquele rosto se viam anos de apoesares variados. Apoesando-se daqueles sofrimentos todos, o rosto conseguia de alguma forma transmitir uma calma e uma serenidade que eu sentia faltar em mim mesmo naquela manhã fria de junho. Era um rosto gordo e tranqüilo de Buda.

Uma boa forma de verificar o quanto uma pessoa vive bem é ver a capacidade que ela tem de existir apoesar os próprios problemas. Apoesar não é adoçar, não é fazer poesia sobre o sofrimento. Apoesar é lidar com a dor de forma sincera, sem fingir que ela não existe, sem tentar fugir dela. Apoesar não deveria nem ser escrito como verbo, mas apenas como conjunção adversativa. Como tudo o que é humano padece, só nos resta viver apoesar do padecimento. Viver é padecer e ainda sim viver apoesar de tudo. Essa palavra eu aprendi naquele dia.

A outra moça buscava com o corpo a sombra da pequena castanheira que havia ao lado do banquinho. Com uma mão, segurava um celular com o qual conversava. Ao contrário da outra, era uma moça magra. Sua voz agoniada no celular quebrava a paz daquela manhã estranha. A moça conversava com alguém importante para ela. Falava como as pessoas falam de coisas importantes que acabarão por ter uma grande importância em suas vidas. A conversação nessas ocasiões se dá sempre como um enfrentamento entre frentes opostas, com retrocessos, concessões, rompantes de raiva e de angústias e por fim novos acordos. A moça vestia uma calça jeans com uma sandália, numa combinação igualmente fora dos parâmetros do que as pessoas consideram elegante. Tanto a calça jeans quanto a sandália eram velhas e estavam parcialmente sujas de poeira.

A moça magra desligou o celular e parecia chorar. À essa altura eu tinha acabado de passar pelo grupo. Minha primeira impressão quando os avistei era de que se tratava de prostitutas. Provavelmente eu estava certo. Os três já viam minhas costas quando uma delas me chamou. Foi a gorda, já que a outra tinha entrado num choro convulso, e o rapaz parecia dormir. Eu parei de andar quando ouvi. A verdade é que o grupo tinha me cativado de alguma forma, e eu precisava saber mais sobre aquelas pessoas. Meu corpo me alertava sobre os aborrecimentos pelos quais eu fatalmente passaria se resolvesse virar e ir até eles. Minhas pernas tinham vontade de apenas seguir em frente, ignorando os chamados débeis do que deveriam ser duas prostitutas feias e infelizes, e um cafetão ou ladrão de galinha.

Virei o corpo e caminhei na direção dos três.

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