sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A voz e a garoa no mundo da Canaleta ( p. I )

Para a maioria dos vagabundos, traficantes, cafetões e adolescentes, parecia uma noite normal. Lá pelas duas da madrugada uma Land Rover pintada de branco, verde e vermelho, com uma sirene da polícia, apareceu no boteco. Era uma birosca caindo aos pedaços, onde se tomava cerveja e jogava sinuca. Havia lá uns quatro salões bem grandes, cheios de mesas de bilhar, com lâmpadas soltas e janelas precárias voltadas para a W3. Entre aquelas mesas se reunia toda a fauna supracitada: pequenos criminosos, aposentados bêbados, um ou outro adolescente descido do Pátio Brasil fazendo pose de malvado. A atmosfera era boa: não se viam muitas brigas, apesar das lendas de gente que morreu empalada com taco de sinuca na bunda. As caixinhas de som pregadas na parede tocavam Raulzito, Almir Sater ou Led Zeppelin, ao gosto da freguesia, e a cerveja era barata, ainda que não muito gelada. A polícia bateu lá atraída por denuncias de tráfico de drogas, porque era lá que uma parte dos filhos dos burocratas (e dos próprios burocratas) compravam maconha trazida das cidades satélites.
A polícia enfileirou os menores de idade na parede, deu baculejo em todos, mandou pra delegacia aqueles que estavam com bagulho no bolso, e mandou pra casa o restante. Os malandros presentes escafederam-se todos. Enquanto os adolescentes entravam no camburão, uma figura conversava com um dos policiais. Era um homem alto e magro, com rosto de feições italianas bem disfarçadas pela maquiagem exagerada, pela peruca vermelha e pelo nariz de palhaço. Devia ter uns quarenta e poucos anos. Seu nome era Antônio. Sua amizade com os agentes da lei era motivada por razões, digamos, profissionais. Além de trabalhar como palhaço num circo ambulante, Antônio se dedicava à atividades menos honradas nas horas vagas, como tráfico de rins e de mulheres.
Intimamente, Antônio repudiava essas atividades. Elas eram, para ele, uma forma de sustentar um hedonismo envergonhado. Antônio apreciava as coisas boas da vida: charutos cubanos, carrões, trajes de palhaço em linho egípcio. Ao mesmo tempo em que garantia mais alguns anos de vida a alcoólatras com dinheiro sobrando, às custas dos rins de indigentes recém-mortos, ele aliviava a consciência doando dinheiro para orfanatos da Igreja e fazendo criancinhas sorrir. Era uma alma boa. Seu fraco eram as crianças: não suportava vê-las tristes. Certa vez fora preso (mas liberado em seguida) por ter assassinado um pedófilo com o pé de uma cadeira.
Para a maioria dos garotos e garotas, parecia um dia normal. Lá pelas seis horas da tarde um ônibus escolar grande e amarelo, daqueles de filme americano, chegou na chácara da ONG e parou ao lado da casa onde eram realizadas as atividades. Enquanto as mulheres de colete azul ajudavam as crianças e adolescentes especiais a subir no ônibus, João olhava a cena quieto num canto. Há pessoas que militam em causas políticas, religiosas, ou até em causa própria. Aquelas mulheres militavam na causa dos cromossomos à mais. Aquela visita ocasional ao teatro havia ressuscitado nele a pose típica dos momentos de embaraço da infância, mas não por alguma razão explicável, premeditada, e sim por algum tipo de assombro não totalmente explicável.
Para a maioria dos músicos, ouvintes, vendedores de balas e mendigos presentes, parecia uma noite normal no teatro. A chuva fina que caía do lado de fora escorria suavemente pelas paredes do prédio em forma de pirâmide, nessa época privadas dos quadrados e retângulos de aço que costumavam criar um impedimento para aquelas águas. Naquela quinta feira, a sala estava repleta. Além dos ouvintes de sempre, as poltronas de veludo verde-encardido recebiam também convidados especiais, em todos os sentidos da palavra, inclusive nos politicamente corretos. Apesar da amenidade do léxico usado, juridicamente os "especiais" são tratados como verdadeiros cidadãos de segunda classe, sem poder guiar carros e nem mesmo se casar. Aos primeiros acordes de Mozart, João assume uma expressão vaga no rosto, com as mãos crispadas no braço da poltrona. A música transportava-o longe, ainda mais por que seus vínculos com o mundo dito real não serem tão fortes quanto os do resto das pessoas.
João vivia como um mímico. Sua condição criava paredes onde elas não existiam. E essas paredes por vezes ameaçavam esmagá-lo, tornando-se pequenas demais. João respondia com energia, e num esforço digno de um Sansão acorrentado, só que ao contrário, ele empurrava aquelas paredes para longe, afim de respirar. Acontece que esse ato heróico nem sempre era bem aceito. As vezes a rebelião de João contra seus próprios limites recebia como resposta um novo aperto, um novo sufocamento, dessa vez por parte de seus semelhantes; era quando a sociedade tratava de reaproximar as paredes, empurrando-as umas contra as outras sem se preocupar com o corpo frágil que está entre elas. João respondia com um novo impulso, afastando-as, contra a vontade dos outros. Nesses períodos, o efeito era o de uma sanfona; só que, ao invés da energia se dispersar, ela ia se acumulando. Os esmagamentos eram cada vez mais freqüentes, e os empurrões eram sempre mais violentos e súbitos. João extravasava sua ira às vezes de forma violenta, passiva, se entregando durante dias seguidos à prática do violino. João às vezes empurrava suas paredes descarregando quantidades enormes de raiva sobre o próprio corpo.

4 comentários:

Anônimo disse...

eu também gosto muito da sua prosa.
os textos que estão aqui são excelentes, tenho acompanhado sempre.
:-)

Michael Az. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Michael Az. disse...

A descrição me lembrou o cenário90s
aonde fui criança (:
Teu texto é foda que, mesmo grande, o interesse e curiosidade adquiridos no início, nos leva até o fim!
Na verdade estou bambo de sono e pulei grandes partes, mesmo assim foi válido. Você é realmente bom no que faz. Parabens!

Já lavei as mãos e lembrei de tí, me responde só isso: Vc é uma pessoa instavel?

Michael Az. disse...

Não!Lavei as mãos mesmo, debaixo de uma torneira, literalmente, e não no sentido de deixar de lado, abandonar,dissipar, sacou?
É que pra lavar as mãos você usa água, daí pensei nela, de como é passageira, incolor, impalpável.
Não sendo você exatamente isso, mas leio as tuas composições, isso é sentimento, pesquisa, vem de dentro de você... e não so contigo, monto um cenário, um corpo, uma imagem, pra acreditar nela, pra da mesma imagem fazer uso sentimental e simbólico.
E assim são todos os virtuais!
Mas com shalders é diferente, eu tento imaginar, te entender e você sempre volta embaraçando, misturando, modificando da forma mais clara e culta.
(Em total sentido positivo)
Porém confundo muito, tudo o que parti de tí, não saio com uma idéia exata, saio com inúmeras alternativas pra escolher alguma...
É essa a tua intenção?
Contudo,é bom.

O que não é legal é vc pensar que ja me fez algum mal. Como assim? Acho que não é possivel quando há tanta distancia e pouca relação, só letras e mais letras. isso não é suficiente pra algum mal, com tantos absurdos acontecendo no mundo.

"uma coisa boa não se deixar levar pelos ditames da moda. Eu acho que a criatividade e o gênio vão na contramão da aceitação social e das "boas aparências".
Em que ponto se refere? faça como sempre, seja sincero,sem rodeios!

Desculpa se fui chato,específico demais cntg, isso é detalhe que insisto a tornar como divagações.
=*