quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A voz e a garoa no mundo da Canaleta ( p.II )

Era precisamente nesse estado de espírito que João estava naquela noite. O rio das angústias intimas de João escorria através da água que caía na chuva, escorria nas notas que iam sendo criadas uma após a outra pela batuta do maestro. Antônio viu João. E João viu em Antônio um caminho pra fora de si mesmo, um instrumento que daria forma à rebelião daquela enorme quantidade de raiva que ele acumulava dentro de si, como um dique que represa mais água do que pode conter com sua frágil estrutura. Antônio seria um instrumento, Antônio tinha a atmosfera de um pederasta violento e cínico. Antônio não viu em João mais que o rosto lerdo e infantil, as nádegas moles e esbranquiçadas, o membro pequeno e murcho. Antônio viu em João uma peça de carne embalada à vácuo. Foi assim, numa comunicação quase telepática, que ambos se levantaram quase simultaneamente e foram ao banheiro.
Se encontraram no corredor atrás da sala. Sem trocar uma palavra e nem se aproximarem muito, ambos entraram por uma porta ao lado do banheiro. Caminharam longamente pelos muitos corredores confusos existentes na parte do teatro ao qual o público não tem acesso. Passaram por várias saletas com sofás em tons variados de creme e marrom, que recendiam à charutos e outros tipos de cigarros de origem incerta; passaram por camarins e cochias, subiram escadas estreitas e caminharam por andaimes que se erguiam na imensidão da parte da sala que fica atrás dos anteparos do palco. E foi num desses andaimes, ao mesmo tempo escondidos e colocados como que num altar, que eles confluíram um para o outro. Ou assim pareceu ao autista. Para o palhaço foi mais uma foda brutal, ou melhor, várias fodas brutais. Para o autista foi um grito sarcástico de auto afirmação e auto-mutilação, uma rebelião contra a imposição social,um culto aos símbolos fálicos violentos. Disso tudo o palhaço só ouviu os uivos proferidos pela cômica figura deitada de bruços sob ele. E enquanto ouvia, o palhaço rezava para que a orquestra não parasse de tocar enquanto o autista gritava. Mas, subitamente, a orquestra terminou. O curto intervalo de tempo ocupado pelo ruído das palmas e gritos da platéia foi suficiente para que o palhaço calasse sua vítima, e depois recomeçasse a estranha dança com o cuidado de manter manto do silêncio sobre eles.
Chegaram ao fim. Ainda sem dizer palavra, o palhaço, Antônio, se recompôs em sua aura de dignidade social e de homem maduro. E foi calado que Antônio virou as costas para o autista, jogado sobre o compensado empoeirado do andaime. Ajeitou a flor na lapela, caminhou firmemente para a escada, desceu-a degrau por degrau, saiu pela lateral da coxia e foi embora. O autista, João, foi bem mais lento. Levantou-se, deu um urro, recolocou as calças não sem certa dificuldade. Caminhou trêmulo pelos andaimes. Sentiu um medo incrível ao olhar a pequena escada de ferro que teria de descer. Começou. assim que largou o compensado do andaime, parou. Desceu mais três degraus e parou novamente. Num ritmo que crescia com a proximidade do chão, João finalmente completou a jornada uma hora após começá-la. Andou pelo teatro, errando pelo grande espaço atrás da sala, atá atravessar a coxia. Ao chegar à saída da sala, que estava completamente vazia, João teve a horrenda surpresa de descobrir que a porta estava fechada. Teria de arrumar um jeito de sair daquele lugar. Seu corpo doía.
João subiu a rampa lateral da sala, mancando um pouco. A agressão estava feita. Mais saboroso seria ver a cara de espanto, os trejeitos cômicos de piedade que o estado deplorável de seu corpo suscitaria nas enfermeiras, mães, enfim, no aparato de cuidado e repressão, que protege ao mesmo tempo que oprime. A amplidão e a profundidade daquele abismo de sofrimento físico confortavam a alma de João. O prazer físico dos primeiros instantes do ato logo depois se transformou em pura dor. A situação toda punha à claro o ridículo que era ser tratado eternamente como uma criança, e o choque causado pelo estupro de uma criança dependia todo da ação e da vontade de João. A sensação de poder resultante abria um riso de escárnio e de satisfação naquele rosto. Pensando nessas coisas, João esquecia-se por momentos da situação urgente: era preciso encontrar a porta, sair daquele labirinto micênico onde ele havia se metido não para evitar o minotauro, mas para exibir orgulhosamente já sido atacado por um.

Um comentário:

Clá Portugal disse...

Nossa, andré, nem sabia que vc escrevia tão bem.
Achei o blog por acaso e gostei.
(: