domingo, 21 de dezembro de 2008

A voz e a garoa no mundo da Canaleta ( p. III )

A porta principal, por onde João havia entrado, estava fechada. As mãos trêmulas e arranhadas ainda chegaram a forçar a barra, de modo a confirmar a fatalidade de estar fechada. João quase entendia o horror de um passarinho preso numa arapuca. Foi até o banheiro, lavou o rosto, urinou. João gostava de observar a urina amarela escorrendo suavemente pelas paredes de louça branca e gélida do mictório; quando urinava, o fazia de forma que a urina batesse meio de lado na louça, de forma à não espirrar, à escorrer lindamente pela parede, como se o jato estivesse sendo achatado, não espatifado. O jato seguia, descendo pelas paredes até o fundo, onde se afunilava numa espécie de redemoinho que finalmente ia pelo ralo. Além disso, o prazer de aliviar a bexiga era corroborado pelo calor que aquecia as mãos, proveniente da parede do mictório, naquele instante de conforto. Saindo do banheiro, e já mais calmo, ele notou a entrada de um corredor que não havia visto antes. Como todo o resto da sala, aquele corredor estava escuro. João foi ao banheiro e acendeu as luzes, para tentar ver melhor. Ao voltar para o saguão, notou que o corredor dava numa rampa descendente. Entrou pelo corredor. No começo ainda havia alguma luz, mas depois de entrar na rampa esta acabou completamente. Com cuidado, avançando colado à parede, joão avançou pela rampa, que deu numa saleta com um par de sofás velhos e uma mesinha de centro. A saleta na verdade não era nada mais que uma junção de corredores; um deles era pequeno e cheio de portas de camarins. Um outro continuava descendo, e o terceiro era a rampa por onde João descera. Desceu pela rampa. Ao fim dela havia um corredor, e, no fim desta, uma sala que parecia uma mistura de almoxarifado com portaria. Acontece que a portaria era aberta, e dava para aquilo que parecia ser uma garagem ou um pátio, porque tinha vários veículos parados, chão de paralelepípedos e grades no alto do teto, que davam para um céu noturno nublado. João seguiu por esse lugar até um portão de ferro, trancado. João chegou ao portão e o forçou para o lado, mas este estava impedido de deslizar sobre os trilhos por uma corrente. A rua ali tão próxima! Uma mera chapa de aço e algumas lanças o separando da liberdade da rua, da jornada para casa! João deu um grito, chutou o portão, machucou o pé e por isso gritou de novo. Parado ali, já sentindo o vento frio de uma chuva que chegava, os gritos se transformavam lentamente num choro abafado de raiva e desespero. Eis que, no máximo dos tormentos, como num clichê romântico, surge de um canto escuro da escada um empregado do teatro. O infeliz, que dormia em uma cadeira desconfortável, acordou com os gritos e gemidos. Pegou o cassetete, com uma mão, e com a outra uma lanterna, e foi ver do que se tratava. Deu com João parado junto ao portão. Perguntou à ele, meio surpreso, o que ele fazia ali. João se encontrava por demais perturbado pra responder. A única reação obtida pelo funcionário era um gemido baixo e descontínuo. Ele disse que não era permitida a presença de gente ali, àquela hora. Foi até a corrente, abriu-a e rolou o portão para o lado. Somente aí foi que João percebeu o que estava acontecendo. Caminhou para fora, e tão logo chegou lá, o portão se fechou atrás dele, com uma pancada. A pancada captou e encerrou a agonia de João. O estrondo inicial ardeu no ar ao mesmo tempo em que uma golfada de sofrimento encheu os pulmões da criatura. Enquanto o barulho ressoava e o ar estava cheio de som, e os pulmões estavam cheios de ar, João transitou nas estepes desoladas do desespero. Os pedregulhos da planície árida cortavam a sola dos pés, o vento frio e cheio de areia açoitava-lhe o corpo desnudo. Os mongóis, montados em seus cavalos, cravaram mil flechas no seu peito e o grito das harpias ecoava nos paredões de pedra cinzenta e disforme. Mas o som não ressoou para sempre. Alguns instantes depois ele era sugado daquele lugar horrendo, e dele só se viam os ecos distantes, como paisagens que se perdem no horizonte cobertas pela bruma. Logo só haviam os ecos do som, retumbando pelas paredes dos prédios próximos e pelo próprio corpo de João. Logo só havia o ar sendo solto pela garganta, levando embora aquela sensação horrível. O som finalmente parara. O ar era ocupado apenas pelas gotículas de chuva que começavam a cair, pelo som do vento manso batendo nas folhas das árvores. A golfada seguinte de ar encheu o peito e uma calma fresca e um pouco triste, mas aliviada, relaxada, com cor e cheiro de lavanda. Os sons nunca param de ressoar. Eles diminuem cada vez mais de força, mas estão sempre aí, pulsando pelo ar. E o ar respirado também sempre deixa alguma coisa nos pulmões de quem respira, como um resíduo e como um tijolo à mais na parede. As sensações amainam, se aproximam de zero sem jamais chegar lá; e no fim elas persistem de alguma forma, ressonando para sempre acumuladas no peito de quem sente. E logo só havia a rua, a canaleta, com uma chuva fina e melancólica. A chuva era tão fina que sequer caía; ao invés disso era arrastada rua abaixo pelo vento, descrevendo redemoinhos contra a luz amarela e insuficiente dos postes. João deu um grito de prazer por se ver do lado de fora daquela arapuca monstruosa na qual havia se convertido o teatro. A umidade farta saída da sua boca durante o grito se juntou à chuva que corria e se dissipou no ar da canaleta. A canaleta é digna de nota. Na verdade era uma rua; seguramente uma das ruas mais infelizes desse mundo. Se o leitor acaso quiser um passeio realmente melancólico, sugiro umas voltas pela canaleta, numa noite chuvosa. A rua começa no centro de brasília, passa por baixo de um dos shoppings podres ao lado da Rodoviária, se estende ao lado da entrada de serviço do teatro nacional, e vai desaguar junto aos muitos ministérios e autarquias, verdadeiros estuários onde proliferam seres nefastos, que mereceriam um capítulo à parte. A canaleta merece esse nome por várias razões. Uma delas é que, tendo a bacia e os afluentes que tem, ela funciona como um verdadeiro ralo: por ela escorre morbidamente toda sorte de detritos desse mundo, diariamente. Ela está comodamente colocada abaixo do nível do resto da paisagem, de forma a ocultar da beleza sorridente dos cartões postais de Brasília toda a imundície e a feiúra que por ali trafegam. Sim, imundice durante o dia, e feiúra e o grotesco durante à noite, com as putas baratas, e os mendigos, e os vendedores de crack... A beleza singela desses elementos não combina com o gosto neoplatônico e meio brega, meio delirante da Esplanada. A esplanada é lunar demais, feérica demais, para aturar esses personagens. Como eles persistissem em existir, foi preciso criar essa canaleta para onde eles pudessem escorrer. João apenas começava um passeio pela bela e melancólica noite da canaleta. O passeio feito por João, garanto que ele jamais o esqueceu. Estava desorientado, o coitado, não sabia deveria ir por um lado ou por outro, e por fim acabou descendo, não por alguma elaboração consciente, mas apenas porque era aquele o caminho que oferecia menor resistência ao passo. O clima era profundo, soberbo. Cuidando apenas escapar das mulheres sifilíticas que o abordavam, cuidando escapar de tropeçar em algum humano que se confundia com o pavimento, João andava. Cada passo era fecundo de reflexões novas e interessantes, e no ar pairava o cheiro inebriante da vida livre. O vento batia açoitava o corpo de João, açoitava as árvores, açoitava a terra inteira. E, ao açoitar os viventes perdidos naquela canaleta, o vento produzia um som, distinto demais para ser obra apenas do vento, mas orgânico demais para ter sido conduzido pela batuta de algum maestro no teatro que ia ficando para trás. Como uma folha arrastada pelo vento, João caminhava no mesmo sentido que as gotas d'água, que os pedaços de papel. E no mesmo sentido que o som. Este vinha crescendo, espreitando atrás dos postes. João logo identificou a melodia. Era uma ária de ópera. Falava sobre a vida numa canaleta parecida com aquela num país distante e frio. Era um trecho de Summertime, de Gershwin, que o vento trazia. E é por isso que, até hoje, as más línguas dessa cidade contam para os maus ouvidos a história de João, e de seu passeio colossal naquela noite da canaleta. E elas acrescentam, não sem um riso no canto da boca, que o mesmo passeio já foi muitas vezes acompanhadas da mesma trilha sonora, por vários Joões ao longo das noites. "É uma espécie de hino das canaletas desse mundo", dizem elas. É uma celebração.

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