A hora de descer do palco é sempre a mais difícil. O trapezista ouvia as palmas do fim do espetáculo como um som misto, feito de júbilo mas também de agonia. O som prenunciava o cair da escuridão pesada sobre o palco, uma escuridão que com o seu peso, sua massa, expulsava todos eles para fora dali, para a colchia e por fim para o camarim, irresistível como um vento forte. Não que o trapezista amasse o palco, nem que tivesse medo do camarim. Mas o palco era o reino dele, era o lugar onde ele estava de certa forma sozinho com sua arte, seus anos de treino, seus músculos fortes. Naquele estrado tudo estava resolvido, e lá ele estava certo de que ninguém poderia interrompê-lo ou intervir no que ele fazia. Era o lugar onde só o trapezista existia. O palco comportava somente um corpo ágil com roupas coloridas. Ali não havia espaço para Antônio pai de duas filhas e separado da mulher, nem para João viciado em valium, nem para Carlos nem pra Marcos, nem para nenhum deles, apenas para o trapezista, o palhaço, o homem bala.
E era por isso que era tão ruim descer o palco. Pois o trapezista sabia que já na colchia ele voltaria a ser Marcos, voltaria a ser Antônio, voltaria a ser João. E Antônio não era forte e artista como o trapezista. Antônio deixava as moedas caírem na hora de passar pela catraca do ônibus. Antônio não deslizava num vôo rítmico cheio de piruetas e fogos de artifício que encantavam as pessoas. Quando ouvia as palmas, o trapezista já sabia que um tipo diferente de demônio aguardava Antônio atrás das cortinas.
As mãos dadas que agradeciam o público se desfaziam no momento exato em que a luz se apagava. Cada um carregava o seu próprio cansaço para um lado, ficando totalmente sozinhos. Naquela noite Antônio não voltou para o caminhão dentro do qual ficava seu camarim de trapezista. Trocou de roupa ali mesmo na cochia. Tirou a roupa de trapezista, que foi dobrada e gentilmente guardada dentro de uma sacola. Colocou as roupas de Antônio, apalpando sofregamente o bolso esquerdo da calça, onde a mão logrou encontrar intacta a única coisa que realmente importava para Antônio naquele momento, e que era uma pedrinha de haxixe. Era uma pedrinha escura e quadrada, pouco maior que o polegar de da mão direita de Antônio. Tinha um rosto de Odalisca impresso, fora trazida de um país muito distante e à muito custo. De fato, aquele tijolinho representava as economias de muito tempo.
Antônio saiu debaixo da lona do circo direto para a rua, onde encontrou dois jovens que acompanhavam o circo. Os dois estavam entre a platéia que se dispersava depois do espetáculo. Eles rodavam malabares e seus olhos irradiavam uma alegria plena e infantil. Estavam envolvidos num tipo de jogo quando Antônio chegou. Um deles fazia uma graça com os malabares, que o outro depois tentava repetir. Ao mesmo tempo que divertia, o jogo cumpria uma função didática, já que forçava o jogador menos apto ao treino, tendo o outro por modelo. É claro que nenhum dos dois pensava nisso diretamente. O estado dos dois suscitava dúvidas nos pais de família presentes sobre se eles conseguiam pensar diretamente em alguma coisa naquela hora. Assim que Antônio apareceu os dois pararam o jogo e se voltaram para ele. Como Antônio era o único membro "de verdade" do circo que eles conheciam, havia um vínculo quase de vassalagem entre eles.
Embora já estivessem acompanhando o circo à uns três meses, ainda se consideravam como viajantes independentes, e faziam questão de deixar essa condição clara em sua lida com os outros. Andavam sempre de mochila, por exemplo. E nunca acampavam no mesmo lugar onde o circo propriamente dito estava. Mas três meses já era bastante tempo, e a convivência já corroera um pouco o rigor da relação entre estranhos que eles mantiveram de início com Antônio, de forma que agora os três mantinham conversas que antes teriam parecido comprometedoras, embaraçosas e confusas, e que entretanto divertiam os três por longas horas de tédio, após o almoço, sob a lona.
Os três deixaram o burburinho e as luzes amarelas do circo para trás, caminhando noite adentro em direção ao clarão no céu onde eles supunham ser o centro da cidade. Era um grupo estranho. O bom senso burguês diria se tratar de um trabalhador rural acompanhado por dois vendedores de artesanato da torre de TV. E foi lá mesmo que os três acabaram chegando, caminhando desde algum lugar ao longo do eixo monumental até o vazio noturno da esplanada.
A caminhada durou pouco mais de uma hora. E num dos muitos momentos onde o grupo não se achava próximo de nenhuma construção nem nenhum ser humano que não estivesse num carro, o rapaz começou a discussão sobre liberdade. Era uma das longas conversas para matar o tempo. Ele falou uma frase bonita que havia lido em algum lugar, acho que para agradar Antônio, e a frase dizia mais ou menos que liberdade é estar aberto à tudo, mas não se apegar à porra alguma. Antônio gostou da frase, mas percebeu que não era do rapaz. Antônio gostava das conversas nem tanto por aquilo que era dito, senão pelas possibilidades que surgiam de fazer pequenos jogos verbais com o rapaz e a moça. E essa frase abria a ocasião para aquela brincadeira na qual Antônio ia inquirindo pequenas incoerências nas falas do rapaz. Antônio vencia se conseguia fazer com que o rapaz desse risadas nervosas e largasse mão daquele assunto, partindo pra outro. E o rapaz vencia se Antônio desse à entender que admirava sua cultura e seus pensamentos. Havia um tipo de acordo tácito entre eles de que aquele tipo de conversa não seria levado à sério totalmente. Nenhum dos três voltava à um assunto que já tivesse sido objeto daquele jogo, por exemplo. Por isso mesmo, a fronteira entre a idéia criada na hora e uma idéia séria era sempre turva. Às vezes fazia-se um esforço enfático para alinhar o tema à um dos dois lados, sobretudo quando se tratava de algo muito estapafúrdio ou de algo realmente considerado sério. Mas essas ocasiões costumavam ser aborrecidas para Antônio. Este se divertia realmente com o jogo quando haviam nuances e meias verdades no discurso, que precisavam ser interpretadas.
A luz da manhã seguinte apanhou os três deitados nuns banquinhos de quadra. O rapaz e a moça dividiam um enquanto Antônio deitava no outro, logo ao lado. A noite anterior fora movimentada. A grande quantidade de haxixe fumada acabara por deformar um pouco as lembranças, de fato que Antônio guardava apenas um emaranhado de imagens, sons e sensações da noite que passou. Lembrava também de alguns rostos diferentes. Era sempre assim com o haxixe: primeiro vinha uma lembrança desorganizada e afetiva, como uma onda, que depois era organizada até constituir uma narrativa que explicasse as coisas de forma satisfatória, e que mesmo assim ele sabia que nunca era definitivamente correta.
Os três sentaram num bar, logo que chegaram à cidade. Apesar de ser uma birosca voltada para a parte de trás de uma quadra comercial, haviam bastante mesas de plástico e todas elas estavam cheias de gente. A moça brincou com os malabares e chamou atenção de vários grupos de pessoas que estavam ali bebendo. Do bar, Antônio notou apenas que os blocos de apartamentos ali perto tinham um ar hostil e que a cerveja era cara.
Lá pela uma da manhã o lugar fechou, dispersando os gatos pingados madrugada adentro. A moça e o rapaz conheceram um grupo que bebia no bar, e que depois acabou seguindo os três. Antônio saiu pela noite fria e mal iluminada com os outros, e à medida que caminhava seu desgosto daquela cidade ia aumentando. O ar frio machucava as narinas e a garganta. Por fim, acharam um pouso que agradou à todos. Era uma quadra de esportes totalmente destruída; ficava dentro de um descampado no meio das quadras. As pessoas do lugar haviam pego os troncos caídos de árvore e construído banquinhos. Antônio achou agradável estar num lugar tão singularmente humano e que por isso mesmo se destacava da paisagem em volta.
Eles se sentaram lá e fumaram haxixe. O rapaz trazia um pequeno canivete com o qual tirou lasquinhas da droga. Alguém doou um cigarro de palha, que o rapaz desmanchou. O tabaco do cigarro foi misturado com haxixe e posto dentro de um grande cachimbo. Este era de madeira e tinha esculturas de durepóxi pintadas com tinta óleo e sementes coloridas. Era um pouco assustador, e talvez fizesse uma criança pequena chorar de medo, com sua pequena cara de demônio em cima do cabo.
Todos ficaram muito loucos. O grupo que havia vindo do bar foi embora. Eram um menino e duas meninas, todos tinham uns 20 e poucos anos e eram simples vagabundos de Brasília. Não se conformavam em ficar em casa à noite e saíam por aí conhecendo todo tipo de gente que se pudesse achar pela madrugada. Tinham um ar entediado e seus corpos eram meio pálidos, porque nunca andavam durante o dia. Falavam num linguajar peculiar, que misturava os inícios de uma erudição livresca com falares extravagantes recolhidos ou criados especialmente para esse fim. Se diziam adeptos de práticas sexuais pouco comuns e pareciam fornicar muito entre si. A moça notou que o menino, que se chamava Danilo, tinha um ar meio afeminado. Os três contavam estórias de outras madrugadas enquanto Antônio e o rapaz, doidões de haxixe, pegavam madeira pelo descampado para fazer uma fogueira.
- Teve aquela vez que a gente caiu na casa daquela guria louca. Velho, a mina chamou todo mundo pra casa da tia dela, que tava vazia. Tinha umas 15 pessoas lá e era todo mundo desconhecido, estranho mesmo. E ela tava muito louca. Tava tocando dorival caymmi mas ela dançava como se fosse psy trance, sei lá. Ela levou o danilinho pro quarto e chupou ele até o coitado ficar com o piruzinho ardendo (risos). Ela deu sorte de só ter gente boa, por que se tivesse alguém com maldade do coração podia ter roubado todas as coisas dela!
O tom da conversa aumentava sempre mais, acompanhando o fogo que ficava sempre mais forte. De repente o menino fez silêncio e fez sinal para que os outros silenciassem também. E no silêncio que se fez eles escutavam apenas as toras de madeira pegando fogo e o barulho de cascos de cavalo contra o chão de concreto da calçada. Era uma dupla de policiais montados à cavalo que passava desfilando uniformes pretos e agressivos, acentuando o caráter feudal da cidade.
- Esses porras tão passando direto por aqui. Tem uma galera que já rodou com esses canas de cavalo. E o foda é que nem dá pra tentar fugir, por que à cavalo dá pra entrar dentro da jamaica. Na viatura dá até pra vazar quando os canas tão chegando, mas de cavalo é foda.
O grupo de brasilienses foi embora lá pelas 3 ou 4 da manhã. Convidaram a moça e o rapaz para ir com eles, provavelmente para a casa ou apartamento de um deles. Como eles recusaram, só restou aos infantes irem embora se chupar em outro canto. O rapaz e a moça foram para uma parte mais escura da jamaica, deixando Antônio sozinho diante do fogo. Àquela altura, Antônio não se lembrava nem em que parte do mundo estava. Divertia sua mente pensando em como seria ver o mundo através das pupilas opacas de um cachorro morto. Nessas horas, Antônio apenas sentia. Sentia o frio nas costas e o leve calor do fogo na parte da frente do corpo. Sentia o chão da quadra onde estava deitado. Uma semente de alguma daquelas árvores embaixo das suas costas, ou quem sabe uma pedrinha. E absolutamente, quando ficava assim, sentia que pertencia organicamente àquele lugar, fosse onde fosse. Sentia que se ele saísse dali faria um buraco no mundo que sangraria até se acomodar novamente sem ele. Sempre que ele ficava assim lhe vinha à mente aquela imagem que ele viu um dia. de um cachorro morto. Era no meio de Minas, no acostamento de uma estrada, num lugar que parecia o alto de um morro. Um cachorro preto estendido do lado da estrada, morto sob o sol de meio dia. Não fora atropelado, mas estava lá morto. Devia estar lá à uns três dias. Antônio viu aquilo quando criança e a cena nunca lhe saiu da cabeça. Particularmente os olhos do cão estavam fortemente impressos na memória; junto com várias outras lembranças mais ou menos sem sentido da infância. E Antônio ficou pensando nisso até adormecer ao lado do fogo.
sexta-feira, 14 de agosto de 2009
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