2
A maldade se processa na mente de um modo sutil. As almas inocentes procuram afastar com tal pertinácia a ideia dos crimes horrendos que elas secretamente concebem que, às vezes, seus donos fazem as coisas acreditando-se vítimas acaso ou das circunstâncias. Era desse tipo a elaboração mental que fez o primo de Amélia cogitar trazê-la para o monte de poeira vermelha e caótica aonde acabou por brotar a capital do País. As figuras foram se juntando e formando um quadro que aquela consciência, ao ver, preferiu recuar e ignorar, tomada de terror que estava. A ideia era trazer a bela prima direito do sertão ignoto para o barraco de teto de zinco, de onde ela seria mandada para casar-se em troca do perdão das dívidas e da consequente tranquilidade. É claro que o bom homem não podia dormir em paz maquinando tal coisa, e é por isso que a ideia nem chegou à ser concebida direito. Foi logo abandonada como delírio maldoso.
Mas quem irá dizer que não havia um pouco dessa ideia quando ele fez vir a prima para o barracão, pouco mais de seis meses depois? Ela estava lá, e o curso natural dos acontecimentos acabaria levando à concretização do plano que sequer fora concebido, não fosse o acontecido naquele domingo. Agora, morto, o primo dormia o sono dos justos, sem se preocupar de ter feito tal coisa, e sem se preocupar mais com dívida alguma. A dívida foi paga com uma faca na barriga, com cacetete da GEB na nuca e assim por diante. Certamente não foi inútil trazer a prima; no fim das contas ela haveria de lhe providenciar uma cova rasa, que já é melhor que a vala comum.
Foi um homem bom, o primo. Só não fora bom o bastante. Outros foram mais atrozes, mais selvagens que ele, e como muitos outros com bolas pequenas demais ou grandes demais, acabou morrendo jovem.
Levou uma vida curta porém feliz, pobre porém livre. Como era esperto, acabou ganhando dinheiro. Teria ganho mais, se tivesse sido mais esperto e se mantido vivo. Vivia de fazer pequenas viagens numa velha Kombi. Trazia coisas de Minas e de Goiânia que vendia aos candangos. Nos últimos tempos tinha começado à trazer coisas que davam um barato diferente. Trazia um pouquinho pra ele e um pouquinho para vender pra uns amigos. Tinha até doutor que comprava, às vezes. Passava os dias entre procurar comida, ler Rimbaud, ficar doidão e jogar sinuca. As viagens provinham o que ele precisava pra viver, que não era muito.
Gostava de escrever, o primo. Escreveu um punhado de versos, todos num caderno antigo e soltando as folhas. Ultimamente tinha largado de escrever, porque sempre se sentia um pouco mal quando olhava os versos no caderno. Os versos pareciam suficientes talvez para compor a figura de um poeta meio vagabundo num texto de outra pessoa, mas por si mesmos eles não criavam um universo, não eram completos em si mesmos. Ele pensava: a escrita tem que criar um mundo. A escrita é fraca e lenta, como uma caminhada. Ela não é impressionante como uma música ou um filme, e a única vantagem dela é, justamente como numa caminhada, poder visitar os cantinhos e becos que não são acessíveis aos outros meios. Assim se sentia o primo nas noites longas à beira do lago.
Mas ultimamente as coisas tinham ficado feias. É que ficar doidão parecia ser muito melhor que as outras coisas. Passear com o cachorro e fumar um baseado à noite era de fato uma ideia muito atraente, bem melhor que uma esposa sempre reclamando e crianças com a fralda à trocar.
As coisas aconteceram depressa, logo que ele saiu da cidade livre e foi para o que depois seria chamado de vila planalto. Entrou em desacordo com uns caras da vizinhança, que logo lhe tomaram a Kombi, na base da ameaça; teria acabado como capanga e empregado daquela gente, se não tivesse acabado morto. O problema todo é que os negócios tinham ficado muito famosos na cidade livre. Quando começaram a aparecer filhos de delegados para comprar, ele soube que era hora de cair fora dali.
Por fim, morreu cedo, antes dos trinta. E tudo o que deixou foi um pequeno baú com textos e um livro incompleto sobre a vida no sertão. Dentro do bauzinho havia ainda algum dinheiro e um saquinho de marafa. Deixou também a prima dentro de um barracão de zinco, com um menino negrinho todo estatelado, cheio de marcas de pancada.
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Amélia
1
Era quase noite quando Amélia saiu da mercearia. A música que cantava sobre bancas de revistas, coca-cola e preguiça ia se perdendo entre os outros sons do ambiente quando foi definitivamente quebrada pelo som de tiros. Nada haveria nisso de anormal, mas os tiros vieram de perto, e foram terminar enfiados na parede alaranjada de poeira bem atrás da cabeça dela, parede essa que deveria ser uma das poucas de alvenaria daquelas redondezas. Eles estancaram. Amélia e seu primo. Amélia olhou os buracos na parede e sentiu-os como se fossem na própria pele. Às vezes o desespero tem esse efeito de aguçar as sensações da gente. Ainda que os tiros não fossem para ela, e ela sabia que não eram, ela sabia que de onde vieram aqueles poderiam vir ainda alguns outros, e que o dono do dedo que apertou o gatilho poderia rapidamente mudar de ideia. A violência é a melhor forma de convencimento que existe.
Naquela hora, tudo que Amélia queria era os tiros parassem. Não lhe importava mais a honra, nem o corpo, nem as chaves do barraco de madeira coberto com zinco onde ela morava, ali perto. Os donos dos tiros apareceram logo. Um homem baixo e troncudo, sem camisa e usando uma calça jeans apertada com chinelo de borracha. Seu rosto retorcido de raiva e de álcool lembrava as árvores baixas que cercavam a terra vermelha do acampamento. Ao lado dele, mais três homens completavam o quadro que surgiu por detrás da nuvem de poeira vermelha.
Os homens murmuravam algo entre si; logo o primo largou Amélia encostada na parede e foi ter com eles. O homem baixo cuspiu diante dos pés do primo de Amélia. Falaram qualquer coisa entre si, e ele entregou a arma à um dos que andavam com ele. Pegou uma faca comprida e parcialmente enferrujada, com um cabo tosco de madeira, que parecia ter sido feito em casa. O primo de Amélia sacou outra faca semelhante, que estava em sua cintura. Enquanto a crescente multidão se reunia em torno deles, um dos homens sem camisa agarrou os braços de Amélia por trás, obrigando-a a assistir o martírio do único homem do mesmo sangue que ela. O rádio não emitia mais os acordes preguiçosos de Caetano, mas a voz áspera de algum cantor esquecido.
Ao fim do evento, o vestido branco se Amélia exibiria uma espécie de mural com as cores daquele domingo: por baixo o alaranjado da poeira cheia de ferro, depois as manchas de bebida obtidas na mercearia, depois o preto das mãos sujas de graxa do homem, que, a essa altura, além segurá-la apalpava seus seios e todo o seu corpo.
A luta prosseguia. Ora um avançava, ora outro. Ambos estavam cheios de cortes e com uma camada de sangue já seco sobre a pele quando apareceram os homens da GEB. Estes desceram de um camburão, alguns armados com porretes, outros com fuzis. Enquanto estes atiravam, aqueles, mais ativos, distribuíam fartas pancadas na multidão que rapidamente se dispersava. Amélia viu um menino de quinze anos correndo no meio da confusão. Ele inclinava o corpo e tentava proteger a cabeça enquanto corria, mas a fuga foi impedida por uma cacetada certeira do guarda. Voaram sangue, voaram dentes do menino. Antes que seu corpo desabasse no chão, a sola de um coturno imprimiu uma marca dolorosa em suas costas. O povo todo escafedeu-se. No chão ficaram o primo da moça, esfaqueado e porreteado, e o outro. Amélia, que tinha saído relativamente ilesa, deitou-se no chão ao lado do primo; este jazia quente e inerte no chão. A poeira que baixava lentamente se acumulava sobre o corpo do rapaz, formando uma espécie de casca ao se misturar com o sangue. Amélia deixou ali suas lágrimas, que ela sabia que seriam o único tipo de serviço funerário que rapaz receberia. Arrastou o corpo até a porta do barracão, e, sentada na soleira da porta viu chegar o menino. Ela sequer notara que estava sendo seguida. Junto dela e do corpo, ele mal conseguia falar. Chorava e se enrolava com um feto no útero, apenas.
As dez da noite, o estranho mural estava completo: Sobre o pano a poeira, sobre a poeira o licor, sobre o licor a graxa, e sobre a graxa o sangue.
Uma vela estava acesa sobre o menino, que limpava os ferimentos numa bacia de alumínio cheia d'água avermelhada de sangue e poeira. Outra vela estava acesa sobre Amélia, que, apesar da desgraça toda, lavava o vestido, que além daquele ela só tinha mais outro. Lavava o vestido numa tina semelhante à do menino, enquanto chorava.
Enquanto chorava, matutava na morte do primo, e no que seria dela dali pra frente. O primo morreu por conta de dívida, não há dúvida. Suspeitou por um momento que ela mesma fizesse parte do arranjo. Mulher por ali era coisa rara. Mas ele não teve coragem de a entregar. Se Amélia fosse parar na mão daquela gente, terminaria na frente de uma fila de homens sedentos, em alguma casa famosa.
Bom primo! Os pensamentos iam ficando turvos como a água da tina, até cessarem por força da exaustação.
Era quase noite quando Amélia saiu da mercearia. A música que cantava sobre bancas de revistas, coca-cola e preguiça ia se perdendo entre os outros sons do ambiente quando foi definitivamente quebrada pelo som de tiros. Nada haveria nisso de anormal, mas os tiros vieram de perto, e foram terminar enfiados na parede alaranjada de poeira bem atrás da cabeça dela, parede essa que deveria ser uma das poucas de alvenaria daquelas redondezas. Eles estancaram. Amélia e seu primo. Amélia olhou os buracos na parede e sentiu-os como se fossem na própria pele. Às vezes o desespero tem esse efeito de aguçar as sensações da gente. Ainda que os tiros não fossem para ela, e ela sabia que não eram, ela sabia que de onde vieram aqueles poderiam vir ainda alguns outros, e que o dono do dedo que apertou o gatilho poderia rapidamente mudar de ideia. A violência é a melhor forma de convencimento que existe.
Naquela hora, tudo que Amélia queria era os tiros parassem. Não lhe importava mais a honra, nem o corpo, nem as chaves do barraco de madeira coberto com zinco onde ela morava, ali perto. Os donos dos tiros apareceram logo. Um homem baixo e troncudo, sem camisa e usando uma calça jeans apertada com chinelo de borracha. Seu rosto retorcido de raiva e de álcool lembrava as árvores baixas que cercavam a terra vermelha do acampamento. Ao lado dele, mais três homens completavam o quadro que surgiu por detrás da nuvem de poeira vermelha.
Os homens murmuravam algo entre si; logo o primo largou Amélia encostada na parede e foi ter com eles. O homem baixo cuspiu diante dos pés do primo de Amélia. Falaram qualquer coisa entre si, e ele entregou a arma à um dos que andavam com ele. Pegou uma faca comprida e parcialmente enferrujada, com um cabo tosco de madeira, que parecia ter sido feito em casa. O primo de Amélia sacou outra faca semelhante, que estava em sua cintura. Enquanto a crescente multidão se reunia em torno deles, um dos homens sem camisa agarrou os braços de Amélia por trás, obrigando-a a assistir o martírio do único homem do mesmo sangue que ela. O rádio não emitia mais os acordes preguiçosos de Caetano, mas a voz áspera de algum cantor esquecido.
Ao fim do evento, o vestido branco se Amélia exibiria uma espécie de mural com as cores daquele domingo: por baixo o alaranjado da poeira cheia de ferro, depois as manchas de bebida obtidas na mercearia, depois o preto das mãos sujas de graxa do homem, que, a essa altura, além segurá-la apalpava seus seios e todo o seu corpo.
A luta prosseguia. Ora um avançava, ora outro. Ambos estavam cheios de cortes e com uma camada de sangue já seco sobre a pele quando apareceram os homens da GEB. Estes desceram de um camburão, alguns armados com porretes, outros com fuzis. Enquanto estes atiravam, aqueles, mais ativos, distribuíam fartas pancadas na multidão que rapidamente se dispersava. Amélia viu um menino de quinze anos correndo no meio da confusão. Ele inclinava o corpo e tentava proteger a cabeça enquanto corria, mas a fuga foi impedida por uma cacetada certeira do guarda. Voaram sangue, voaram dentes do menino. Antes que seu corpo desabasse no chão, a sola de um coturno imprimiu uma marca dolorosa em suas costas. O povo todo escafedeu-se. No chão ficaram o primo da moça, esfaqueado e porreteado, e o outro. Amélia, que tinha saído relativamente ilesa, deitou-se no chão ao lado do primo; este jazia quente e inerte no chão. A poeira que baixava lentamente se acumulava sobre o corpo do rapaz, formando uma espécie de casca ao se misturar com o sangue. Amélia deixou ali suas lágrimas, que ela sabia que seriam o único tipo de serviço funerário que rapaz receberia. Arrastou o corpo até a porta do barracão, e, sentada na soleira da porta viu chegar o menino. Ela sequer notara que estava sendo seguida. Junto dela e do corpo, ele mal conseguia falar. Chorava e se enrolava com um feto no útero, apenas.
As dez da noite, o estranho mural estava completo: Sobre o pano a poeira, sobre a poeira o licor, sobre o licor a graxa, e sobre a graxa o sangue.
Uma vela estava acesa sobre o menino, que limpava os ferimentos numa bacia de alumínio cheia d'água avermelhada de sangue e poeira. Outra vela estava acesa sobre Amélia, que, apesar da desgraça toda, lavava o vestido, que além daquele ela só tinha mais outro. Lavava o vestido numa tina semelhante à do menino, enquanto chorava.
Enquanto chorava, matutava na morte do primo, e no que seria dela dali pra frente. O primo morreu por conta de dívida, não há dúvida. Suspeitou por um momento que ela mesma fizesse parte do arranjo. Mulher por ali era coisa rara. Mas ele não teve coragem de a entregar. Se Amélia fosse parar na mão daquela gente, terminaria na frente de uma fila de homens sedentos, em alguma casa famosa.
Bom primo! Os pensamentos iam ficando turvos como a água da tina, até cessarem por força da exaustação.
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
Jzaz Verballia (ou, poema frito à graça aranha)
Tipográfico pra caralho.
Parece um grilo usando tênis.
Aos poucos as letras passam a ser apenas
risquinhos divertidos no papel
1
Eu aqui fritando só
E ela vem pra mim e diz:
ahuhau
akemi diz:
tbm kero
E eu grito
Menina, você ri como um demônio!
2
Não se convém deixar levar por tais demônios, porque.... os cabelos de seda de M. eram rasgados pelo som das teclas.
A melodia da sua voz era interrompida pelos canhões.
ANTES, houve quem quisesse que em vez de louvar à Marília, nas suas odes, o aedo louvasse ao Deus e à Deusa pelo Amor.
Ao que ele respondeu: São eles por acaso quem deitam sobre mim o calor do sol em plena noite fria ? São eles que curam minhas angústias com uma palavra amiga ?
- Louvarei à minha amada em minhas Odes, e à mais ninguém.
- Suas mensagens em meu celular são para mim toda a poesia das esferas elevadas.
e pelos
etc
etc
etc
etc
etc
etc
etc
da vida à dois
O Amor
se esvaiu
e no fim restaram as cantigas populares .
c
Minhas mãos sujas trazem o gosto da rua, gosto de vida.
Esse c parece um espermatozóide oblíquo admirando-se da própria potencialidade.
30% de poesia sobre a rua , 60% de rua ela mesma, 10% de poesia replicante, cheia de porcentagens.
4
- Precisa-se de palavras claras, que saibam sambar, que saibam limpar e passar, para me ajudar na faina diária. Palavras confusas me ajudariam apenas a lembrar de gentes inconclusas.
- papai, aconteceu ontem, eu fiz umas rimas ruins.
- ....
- Querida, acho que temos que levar esse menino no médico, pra tomar a anti-poética.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
ouvindo beatles
O teu cérebro está ficando cada dia mais lento. Sinto uma degradação. Nada dos sentidos duplos, dos corredores largos, dos conceitos fartos de outrora. Essa época chuvosa costuma representar uma seca nas tuas ideias. É claro que as ideias continuam existindo. O problema todo é o hábito essencial de prestar atenção nelas, que se perde quando se está à muito tempo sem criar nada. Viver sem pensar é uma coisa realmente deliciosa. Para mim, pensar é mais ou menos o mesmo que escovar os dentes: não se trata de iluminações momentâneas geniais, mas esforços constantes, sistemáticos, que acabam formando um hábito. Um gênio é o fruto de anos e anos de laboração e de atenção às próprias ideias. Não tem nada a ver também com o trabalho intelectual em si; é um hábito ainda mais intimo, que não pode ser incentivado por nenhuma imposição externa. Viver sem pensar é o mesmo, mentalmente, que acordar e não arrumar a cama, almoçar e não lavar a louça, e, ao invés disso, deitar no sofá para assistir tevê. A diferença toda é que, se você não lava a louça e não leva o lixo pra baixo, aos poucos começam a aparecer baratas, moscas, lagartos, e toda a fauna e flora própria e peculiar dos ambientes imundos. Já com a mente acontece o contrário: os pensamentos se tornam estéreis. Aos poucos, qualquer fiapo de ideia começa a ficar raro. O lugar todo se torna deserto. E aí as coisas da vida real começam a parecer simples e desbotadas. A vida parece ser simples, o bom parece ser apenas bom, e os maus merecem apenas punição.
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
Um slogan para Barack
- Para que as eleições não passem em branco, vote Obama.
***
I'm so sorry, guys. I was too high for writting, yesterday.
***
I'm so sorry, guys. I was too high for writting, yesterday.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
sobre blogs, queijos e epígonos
Por que não ler blogs? Porque não, em vez de comprar montes de folhas com assinaturas célebres, se perder nos corredores úmidos e difusos das páginas de um monitor qualquer? Não como fonte única, mas como complemento...
Também o leite pasteurizado trás lá indicações de não ser utilizado como única fonte de alimentação do lactente. A "blogsfera" é como o leite, como a via láctea. Uma dispersão (ou um colóide), comum, cotidiano, sem forma definida, líquido, quase gasoso.
Já os livros prontos e celebrizados e estabelecidos são como o queijo: fechados, sólidos, à venda nas feiras e nas boutiques. Até nisso os livros e os queijos se parecem: os mais caros costumam ser os mais embolorados, e são também os de sabor mais apurado.
Hoje empreendi um passeio curioso por entre essa flora jovem e delicada dos blogs. É estranho pra mim pensar que toda essa via láctea será espremida, coada, até chegar numa certa nata, que dificilmente corresponderá ao melhor ou mais original de tudo que foi engendrado pelas nossas mãos. E dessa nata será feito o queijo, e o queijo será consumido dentro do pãozinho francês da nossa mesquinha experiência cotidiana.
O que será feito da produção literária da nossa geração? Será que o século XXI está condenado eternamente à ler "Marley e Eu" ? Haverão Flauberts, haverão Guimarães Rosas, haverão Machadões e Drummonds, haverão Wildes e Tolstois do nosso século? Certamente que haverão. Mas talvez eles estejam fadados à morrer de infarto numa repartição pública aos sessenta anos, ou à morrer de fome enquanto o mundo lê Paris Hilton. Não há nada de mal na Paris Hilton. Admiro aqueles que fazem mais que aqueles que ficam da margem olhando. Mas me angustia pensar na quantidade de beleza perdida num caso desses.
Será que um dia publicarão nossas cartas? Ou melhor, será que um dia publicarão nossas conversas no msn? Não subestimem as conversas no msn. Delas brotam idéias geniais. Acho mesmo que delas virão coisas que assombrarão o espírito do nosso tempo.
E brasília? Um velho tocador de alaúde um dia disse que, daqui à cem anos, seremos o centro cultural do Brasil. Eu desconfio que não, mas penso que talvez sim. Uma Florença no meio do cerrado, com o Paranoá à guisa de Arno...
Também o leite pasteurizado trás lá indicações de não ser utilizado como única fonte de alimentação do lactente. A "blogsfera" é como o leite, como a via láctea. Uma dispersão (ou um colóide), comum, cotidiano, sem forma definida, líquido, quase gasoso.
Já os livros prontos e celebrizados e estabelecidos são como o queijo: fechados, sólidos, à venda nas feiras e nas boutiques. Até nisso os livros e os queijos se parecem: os mais caros costumam ser os mais embolorados, e são também os de sabor mais apurado.
Hoje empreendi um passeio curioso por entre essa flora jovem e delicada dos blogs. É estranho pra mim pensar que toda essa via láctea será espremida, coada, até chegar numa certa nata, que dificilmente corresponderá ao melhor ou mais original de tudo que foi engendrado pelas nossas mãos. E dessa nata será feito o queijo, e o queijo será consumido dentro do pãozinho francês da nossa mesquinha experiência cotidiana.
O que será feito da produção literária da nossa geração? Será que o século XXI está condenado eternamente à ler "Marley e Eu" ? Haverão Flauberts, haverão Guimarães Rosas, haverão Machadões e Drummonds, haverão Wildes e Tolstois do nosso século? Certamente que haverão. Mas talvez eles estejam fadados à morrer de infarto numa repartição pública aos sessenta anos, ou à morrer de fome enquanto o mundo lê Paris Hilton. Não há nada de mal na Paris Hilton. Admiro aqueles que fazem mais que aqueles que ficam da margem olhando. Mas me angustia pensar na quantidade de beleza perdida num caso desses.
Será que um dia publicarão nossas cartas? Ou melhor, será que um dia publicarão nossas conversas no msn? Não subestimem as conversas no msn. Delas brotam idéias geniais. Acho mesmo que delas virão coisas que assombrarão o espírito do nosso tempo.
E brasília? Um velho tocador de alaúde um dia disse que, daqui à cem anos, seremos o centro cultural do Brasil. Eu desconfio que não, mas penso que talvez sim. Uma Florença no meio do cerrado, com o Paranoá à guisa de Arno...
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
ouvindo caetano
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Deitar de bruços no chão gelado da vida real
É realmente dar um abraço apertado no mundo crú, fértil e mau.
.
Deitar de bruços no chão gelado da vida real
É realmente dar um abraço apertado no mundo crú, fértil e mau.
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terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
ouvindo cocteau twins
O ar seco e úmido, fresco e verde queimou minha retina. Preciso me esquecer em algum ofício, em algum outro mar, em algum amor alhures.
+
Ontem de madrugada nós fomos até a beira de um precipício, e lá havia uma flor. As mãos hesitaram em matá-la, mas acabaram matando-a. A flor se entregou, e nós nos entregamos à ela. Por horas seguidas nos perdemos no perfume suabilíssimo, misturado com seiva jovem, o quase não-perfume dela. Aquele perfume nos levou à lugares recônditos e sombreados da infância, à beira de um rio, dentro da mata virgem.
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Ontem de madrugada nós fomos até a beira de um precipício, e lá havia uma flor. As mãos hesitaram em matá-la, mas acabaram matando-a. A flor se entregou, e nós nos entregamos à ela. Por horas seguidas nos perdemos no perfume suabilíssimo, misturado com seiva jovem, o quase não-perfume dela. Aquele perfume nos levou à lugares recônditos e sombreados da infância, à beira de um rio, dentro da mata virgem.
domingo, 1 de fevereiro de 2009
comida de gigante
A menina estava acostumada à ver as multidões. Ossos do ofício alheio. De cima do palanque, as multidões de indivíduos tomavam um aspecto de uniformidade, que variava conforme o lugar, o momento, a tendência política dos demagogos em questão. Ao longo dos anos, a menina e seu amigo haviam criado um jogo que consistia em tentar definir a região de onde era aquela multidão pelo aspecto que ela tinha nas fotos de revista. Da última vez que eles jogaram, a menina perdeu. Confundiu a torcida da Ferrari com a platéia de um discurso do Stalin.
Muitas vezes a menina pensou nas multidões como comida de gigante. Aquele amontoado de seres humanos lhe lembrava um pacote de algum salgadinho. Ela imaginava como seria se todos estivessem dentro de um saco enorme, do tamanho de um prédio, e algum gigante metesse a mão lá e pegasse um punhado de vez em quando para comer. Os adultos gordos ficariam por cima no pacote. Seriam os bocados mais saborosos. Talvez uns três deles fossem suficientes para encher a bocarra de um gigante.
Aí, conforme o pacote fosse esvaziando, no fundo ficariam os menorezinhos. Os gigantes encheriam a mão com vários deles. Talvez até colocassem ketchup daqueles de sachê, o que no caso de um gigante deveria ser mais ou menos um contêiner inteiro, daqueles de navio, cheio de ketchup. Por fim restariam os bebês, que junto com os pedaços de gente perdidos no saco formariam um tipo de farelo, que o gigante em questão viraria do pacote direto na boca, finda a refeição.
Muitas vezes a menina pensou nas multidões como comida de gigante. Aquele amontoado de seres humanos lhe lembrava um pacote de algum salgadinho. Ela imaginava como seria se todos estivessem dentro de um saco enorme, do tamanho de um prédio, e algum gigante metesse a mão lá e pegasse um punhado de vez em quando para comer. Os adultos gordos ficariam por cima no pacote. Seriam os bocados mais saborosos. Talvez uns três deles fossem suficientes para encher a bocarra de um gigante.
Aí, conforme o pacote fosse esvaziando, no fundo ficariam os menorezinhos. Os gigantes encheriam a mão com vários deles. Talvez até colocassem ketchup daqueles de sachê, o que no caso de um gigante deveria ser mais ou menos um contêiner inteiro, daqueles de navio, cheio de ketchup. Por fim restariam os bebês, que junto com os pedaços de gente perdidos no saco formariam um tipo de farelo, que o gigante em questão viraria do pacote direto na boca, finda a refeição.
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